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Por Alessandra Mathyas, Sérgio Guimarães e Brent Millikan
Texto e foto: WWF –
Em meados de janeiro duas notícias de certa forma antagônicas surpreenderam quem trabalha com questões socioambientais no setor energético brasileiro. A primeira foi a abertura de consulta pública do Plano Decenal de Energia (PDE 2031), desenvolvido por equipe multidisciplinar da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia. A outra, o anúncio da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) de prorrogação de estudos de viabilidade de três grandes hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Por que esses dois fatos são antagônicos? Vamos discorrer.
O PDE 2031, em consulta pública até dia 23 de fevereiro, detalha em um capítulo inteiro sobre questões socioambientais, o impacto das mudanças climáticas no setor energético, fazendo alusão às “incertezas quanto à disponibilidade hídrica futura”. Segundo a análise apresentada no plano, “embora haja imprecisões e limitações dos modelos de projeção climática, há conclusões concretas de que ocorre uma mudança nos padrões de temperatura”, o que deverá acarretar “prováveis reflexos nas precipitações”. Soma-se à questão pluviométrica, a demanda pelo uso da água em outras frentes e mudanças no uso e cobertura do solo, que afetam diretamente as reservas subterrâneas que chegam aos rios. Ainda assim, o plano traz um cenário com oito possíveis novas usinas hidrelétricas, mas apenas uma podendo entrar em operação no horizonte de dez anos.
Os últimos dois anos já colocaram em xeque o parque gerador hídrico brasileiro. Não à toa foi necessário acionar mais térmicas, sobretudo desde julho de 2021, chegando a um montante de 26% do total de energia consumido no país (17 mil MWmed). As chuvas do fim do ano trouxeram um certo alívio na vazão e nos reservatórios, mas a população brasileira continua pagando a conta dessa geração termelétrica, em sua maioria fóssil. O que nos leva a concluir que fica muito difícil planejar à luz da disponibilidade dos reservatórios, visto que não se tem clareza ainda dos efeitos do clima sobre o regime de chuvas e reservas hídricas.
Anunciar agora estudos de três grandes hidrelétricas na Amazônia passa a clara impressão de que se trata de uma “medição da temperatura” dos agentes em um ano eleitoral. Segundo notícias da ANEEL, as usinas estariam na Bacia do Rio Tapajós, e são nominadas como Jamanxim, Cachoeira do Caí e Cachoeira dos Patos, totalizando 2,2 MW de potência. Vale ressaltar que nos últimos anos houve um esvaziamento dos interessados nos consórcios desses projetos, sobretudo com a negativa da primeira licença para prosseguir com o projeto da usina São Luis do Tapajós. Agora, com a privatização da Eletrobrás, há ainda mais dúvidas sobre a governança de tais projetos.
Há ainda outros fatores que temperam esse caldeirão que trouxe luz para novos projetos de infraestrutura hidrelétricas já rejeitadas no passado. O Brasil cada vez mais quer entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas para isso precisa seguir critérios socioambientais bastante rígidos. As questões jurídicas e judiciais que envolvem até hoje as últimas grandes usinas hidrelétricas na Amazônia (Santo Antônio, Jirau e Belo Monte) são pontos negativos para o país, somados aos consequentes estudos de danos ambientais e violação de direitos de povos originários.
O país estaria mesmo disposto a ampliar a negatividade no ambiente internacional ao continuar defendendo grandes hidrelétricas, num contexto de mudança climática acelerada e sobretudo num bioma já tão ameaçado? Bioma este que, por outro lado, dispõe de um potencial energético bastante grande para energia solar e as mais variadas fontes de biomassa? Estaria disposto a por em risco o bioma e seus habitantes, em disputas jurídicas intermináveis que atrasam e inviabilizam economicamente um empreendimento do porte de uma grande hidrelétrica e das linhas de transmissão necessárias? Lembremos que o custo inicial de Belo Monte foi de R$ 16 bilhões mas até a inauguração da última turbina, em 2019, já passava de R$ 40 bilhões, sem contar o valor do dano ambiental, orçado timidamente em mais de R$ 1 bilhão.
Voltando ao PDE 2031, onde prevê para o decênio uma nova usina hidrelétrica em Roraima (Bem Querer, bastante contestada por sinal), e tendo como principais argumentos os custos da mudança do clima sobre o setor energético, não faz sentido, num ano eleitoral tão importante, que volte à baila a ameaça de hidrelétricas em uma bacia hidrográfica já tão sensível a outros danos como o garimpo ilegal, o desmatamento, a perseguição a lideranças indígenas e comunitárias. As justificativas de que tais usinas também levariam desenvolvimento sustentável para a região, empregos, infraestrutura além de serem mais baratas que outras fontes, não se sustentam inclusive pelo histórico desse tipo de empreendimento na região. Ainda existem pessoas sem acesso à energia em torno das usinas. Os municípios sede dos empreendimentos têm IDHs mais baixos na região. E os empregos não são perenes e regionais, visto que requerem mão de obra muito qualificada.
E do ponto de vista da geração elétrica, novas usinas de fonte hídrica não são mais necessárias no país. A constatação vem de um amplo estudo realizado em parceria pelo Governo Federal e a Cooperação Alemã (GiZ) com um consórcio de consultores especializados, que mostra como as fontes variáveis de energia renovável (eólica e solar) podem ser integradas ao Sistema Interligado Brasileiro (SIN) sem prejuízos ao abastecimento e com armazenamento adequado. Para isso é preciso investir num forte sistema de transmissão para garantir a operação segura, confiável e estável, o que permitirá a complementariedade das fontes em diferentes regiões.
Ao constatar tais conclusões, fica a pergunta: a quem interessa novas grandes hidrelétricas na Amazônia?
* Alessandra Mathias, Sérgio Guimarães e Brent Millikan são membros do FT Infra, uma rede de mais de 40 organizações unidas para debater modelos sustentáveis de desenvolvimento.

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