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Cientistas abrem “túnel do tempo” no Acre para estudar o passado remoto da Amazônia

Texto de foto: jornal da USP

Uma equipe internacional de pesquisadores iniciou nesta sexta-feira (16 de junho) a perfuração de um poço de dois quilômetros de profundidade no Acre, que, se tudo der certo, deverá funcionar como um “túnel do tempo” para enxergar como era a vida na Amazônia até 65 milhões de anos atrás, logo após a extinção dos dinossauros.

A iniciativa envolve cerca de 60 pesquisadores, de 12 países, metade deles vinculada a instituições brasileiras. Treze são da USP. Trata-se do “mais amplo programa de pesquisa já organizado para estudar a origem e a evolução da Amazônia”, segundo os cientistas. O objetivo é entender como a floresta se formou, como ela se modificou ao longo do tempo e o que pode acontecer com ela daqui para frente, caso as condições ambientais e climáticas às quais ela foi exposta no passado venham a se repetir no futuro — algo muito provável de acontecer já nas próximas décadas, segundo as previsões climáticas do presente.

Para contar essa história pré-histórica os cientistas vão coletar milhares de “testemunhos” do subsolo da floresta, extraídos de duas localidades, nas bordas leste e oeste da Amazônia brasileira. Começando por esse poço de 2 mil metros no município de Rodrigues Alves, às margens do Rio Juruá, no norte do Acre; seguido de um poço de 1.200 metros de profundidade numa ilha fluvial do município de Bagre, no Pará, ao sul da Ilha do Marajó. A previsão é que cada poço leve cerca de três meses para ser perfurado, com equipes trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana.

Cada “testemunho” é uma amostra cilíndrica de até seis metros (m) de comprimento, contendo uma amostragem vertical das diversas camadas de rocha e sedimento que compõem o subsolo da floresta. Cada uma dessas camadas, por sua vez, contém uma série de evidências físicas, químicas e biológicas que os cientistas podem analisar em laboratório para inferir como era o mundo à época em que aquela camada estava na superfície. Fazendo uma analogia, é como se você enfiasse um canudo num bolo para tirar uma amostra das suas camadas e descobrir do que cada uma delas é feita.

“Essas rochas e sedimentos funcionam como um arquivo da história da Amazônia”, diz o professor André Sawakuchi, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, que coordena o braço brasileiro da iniciativa. O Projeto de Perfuração Transamazônica (TADP, na sigla em inglês) é uma iniciativa do International Continental Scientific Drilling Program (ICDP) — um programa internacional de apoio a projetos de perfuração científica, com sede na Alemanha —, realizada em colaboração com a National Science Foundation (NSF), dos Estados Unidos; o Smithsonian Tropical Research Institute, sediado no Panamá; e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no Brasil.
O custo previsto da perfuração é de aproximadamente US$ 4 milhões. A Fapesp contribuiu com um quarto desse valor, mais um investimento de R$ 1 milhão em bolsas de pesquisa e recursos para logística, aquisição de materiais e outras despesas.

O primeiro testemunho foi retirado do solo de Rodrigues Alves por volta das 15h30 desta sexta-feira, horário do Acre (17h30 no horário de Brasília). Foi um momento de ansiedade para os pesquisadores, após vários anos de planejamento e preparação. “Foi um alívio começar a sondagem, sem dúvida; mas ainda temos um longo caminho pela frente”, relata Sawakuchi, que foi ao Acre para coordenar o início dos trabalhos, ao lado dos colegas estrangeiros. A perfuração deve se tornar especialmente desafiadora a partir dos 500 metros de profundidade, segundo ele.
O trabalho de perfuração — ou sondagem, na linguagem mais técnica — utilizará uma combinação adaptada de equipamentos normalmente empregados para a prospecção de minérios e de óleo e gás natural — duas coisas que os pesquisadores esperam não encontrar de jeito nenhum, pois criaria uma série de complicações adicionais para o trabalho, incluindo riscos de segurança. “Não podemos de maneira alguma permitir que haja um vazamento de gás no poço”, explica André Sawakuchi. A empresa contratada para fazer a sondagem é a Geosol, de Belo Horizonte.

Em vez de uma broca tradicional, que vai triturando a rocha à medida que avança na perfuração, a sondagem, neste caso, é feita com uma coroa vazada, que desce cortando a rocha “pelas beiradas” para preservar a integridade das amostras no centro do tubo. Cada testemunho terá entre cinco e nove centímetros (cm) de diâmetro, dependendo das condições de perfuração. Logo que saem do poço, as amostras são entregues aos pesquisadores para serem inspecionadas, catalogadas e repartidas em pedaços menores, de 1,5 metro de comprimento (tamanho padrão adotado pelo ICDP para esse tipo de amostra).
Só a perfuração do Acre, portanto, deverá gerar mais de 1.300 testemunhos. “Isso é muitas vezes mais do que qualquer coisa que foi feita até hoje para entender essa origem da Amazônia na perspectiva geológica”, aponta André Sawakuchi. Muitas perfurações já foram feitas na Amazônia pela Petrobras e outras empresas no passado, diz ele; mas nunca com finalidades científicas, seguindo os protocolos necessários para esse tipo de pesquisa. O material de referência usado pelos cientistas atualmente é da década de 1970, coletado pelo Serviço Geológico do Brasil para a prospecção de jazidas de carvão.

Pesquisadores vinculados ao projeto terão exclusividade de acesso ao material num primeiro momento; depois as amostras serão abertas a toda a comunidade científica nacional e internacional.

“A Amazônia é a região de maior biodiversidade da Terra. Mas como ela ficou assim? E será que continuará assim?”, são algumas das perguntas que o professor Paul Baker, da Universidade Duke, nos Estados Unidos, espera responder com as amostras. Ele é um dos idealizadores do projeto dentro do ICDP, ao lado de Sheri Fritz, da Universidade de Nebraska, e do brasileiro Cleverson Silva, da Universidade Federal Fluminense.

“O projeto examina as origens da Floresta Amazônica e como sua evolução ao longo de milhões de anos foi influenciada pela elevação dos Andes, pelo desenvolvimento do sistema do Rio Amazonas e pela variabilidade climática”, afirma Sheri Fritz. “Estas são questões centenárias que foram feitas pelos primeiros naturalistas, incluindo Darwin, Agassiz, Wallace e Von Humboldt. Apesar de muitos anos de pesquisa, porém, ainda não conhecemos muitos dos componentes críticos dessa história. Isso ocorre, em parte, porque trabalhamos principalmente na superfície da Terra, onde os depósitos são facilmente acessíveis, mas incompletos. Assim, planejamos perfurar profundamente os sedimentos abaixo da superfície para recuperar uma longa história contínua nas margens leste e oeste da Bacia Amazônica.”

De volta às origens
O projeto original previa cinco locais de perfuração, mas o encarecimento de vários itens e serviços nos últimos anos obrigou os pesquisadores a reduzir o plano para dois. Ainda assim, são dois pontos estratégicos, que já permitirão contar muita coisa sobre o passado da Amazônia.

“A Bacia Amazônica abriga vários depósitos sedimentares — as chamadas ‘bacias’ do Acre, Solimões, Amazonas, Marajó e Foz do Amazonas”, explica Paul Baker. “Ao contrário da maioria das regiões continentais do mundo, onde a erosão das rochas em terra produz sedimentos que são transportados pelos rios para serem depositados nos oceanos, a erosão da Cordilheira dos Andes e de muitas regiões da própria Amazônia produz sedimentos que são depositados nessas ‘bacias’ continentais, lugares onde a crosta da Terra afundou por milhões de anos, acumulando centenas a milhares de metros de sedimentos. É esse sedimento que vamos recuperar por meio dos testemunhos.”

Como as camadas de solo se sobrepõem ao longo do tempo, elas seguem uma ordem cronológica: quanto mais profunda a amostra, mas antiga ela é. Tanto no caso do Acre quanto do Marajó, os cientistas calculam que a perfuração os levará à fronteira do fim do período Cretáceo e início da Era Cenozoica, 65,5 milhões de anos atrás, quando a Terra estava emergindo de uma sequência cataclísmica de eventos que levou à extinção de grande parte das espécies existentes à época — tanto da flora quanto da fauna, incluindo quase todos os dinossauros — e reconfigurou os ecossistemas do planeta como um todo.

Foi nesse período que a Amazônia como a conhecemos hoje começou a se formar, diz a professora Lúcia Lohmann, do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências (IB) da USP. Um dos itens mais importantes que ela e outros pesquisadores esperam extrair dos testemunhos são amostras de pólen fossilizado das diferentes plantas que compuseram a flora amazônica ao longo desses milhões de anos, fornecendo evidências diretas de como a biodiversidade da floresta evoluiu no decorrer do tempo, em sincronia (ou não) com fenômenos geológicos, ambientais e climáticos.

Alguns desses grandes eventos do passado já são conhecidos dos cientistas. No início da Era Cenozoica, segundo Lúcia Lohmann, acredita-se que toda a América do Sul era coberta de florestas úmidas. Essa paisagem começou a mudar radicalmente cerca de 30 milhões de anos atrás, com a formação da chamada Diagonal Seca, uma faixa de biomas mais áridos que corta o continente nas regiões que hoje correspondem à Caatinga, ao Cerrado e ao Chaco. A parte norte da Cordilheira dos Andes, que faz fronteira com a Amazônia, começou a soerguer com maior velocidade cerca de 23 milhões de anos atrás, também desencadeando mudanças radicais no clima, na hidrogeologia e, consequentemente, na biodiversidade da região. O Rio Amazonas mudou de direção, passando a desaguar no Oceano Atlântico, e houve longos períodos em que a Amazônia foi alagada por grandes incursões de água doce e até salgada, oriunda do Mar do Caribe.

Os novos testemunhos, porém, permitirão reconstruir essa história com um nível de detalhamento muito maior. “Entender o que aconteceu no passado é essencial para que possamos prever melhor o futuro e nos prepararmos para as mudanças que estão por vir”, afirma Lúcia Lohmann. Ela e o professor Renato Paes de Almeida, do IGc, são os pesquisadores principais no braço brasileiro do projeto, que André Sawakuchi coordena dentro do Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.

Paralelamente ao TADP, um outro grande projeto internacional de pesquisa da história geológica e climática da região está em curso no Oceano Atlântico, com participação de cientistas da USP e de outras universidades brasileiras, a bordo do navio de pesquisa francês Marion Dufresne. É a expedição Amaryllis-Amagas, que vai coletar amostras profundas de sedimento marinho na região da foz do Amazonas e vários outros pontos da costa norte e nordeste do Brasil. Vários dos pesquisadores envolvidos no TADP também participam desse projeto, cujos dados poderão ser combinados com os dos testemunhos terrestres para melhorar ainda mais a resolução dos resultados de ambas as iniciativas. O braço paulista da expedição é coordenado pelo professor Cristiano Chiessi, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, com apoio da Fapesp.
Foto: USP Imagens/ Isaac Bezerra

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