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As bandeiras tremulando lado a lado indicam: metade do parque é brasileira, metade uruguaia. É pelo Parque Internacional compartilhado pelas cidades-irmãs de Sant’Ana do Livramento e Rivera que a recenseadora Luciana Alves Cabreira Fernandes e o supervisor Lucas da Rosa Rodrigues rumam para o setor censitário onde vão trabalhar em uma manhã de primavera.

O trabalho inicia na Avenida Paul Harris, em que um canteiro separa os dois países. Do Brasil é possível enxergar os letreiros em espanhol do comércio uruguaio. No lado brasileiro, um açougue anuncia que “hay vazio”, misturando os dois idiomas e formando um terceiro muito comum por ali, o portuñol.

Sant’Ana do Livramento contava com 82.464 pessoas no Censo de 2010. Rivera, por sua vez, somava 78.880 habitantes no Censo realizado pelo Uruguai em 2011. Ao contrário de muitas cidades fronteiriças separadas pelas águas, são 160 mil pessoas que convivem como se estivessem no mesmo país, cruzando diariamente a fronteira a pé para trabalhar, fazer compras, visitar amigos e familiares, entre outras atividades. Esta fronteira impõe alguns desafios para a realização do Censo Demográfico 2022, afinal, é preciso recensear a população que vive no Brasil e não no Uruguai.

Na Avenida Paul Harris, região central de Livramento, é tarefa simples distinguir os dois países, basta olhar o canteiro. Em regiões onde o estado está menos presente, existem maiores desafios. No bairro com o sugestivo nome de Divisa, uma rua de chão batido serpenteia em um traçado irregular. Por ali, os marcos de fronteira ajudam a traçar uma linha imaginária.

Nascida na Palestina, a supervisora do Censo Luana foi assim batizada graças às novelas brasileiras – Foto: Felipe Prestes/IBGELuciana e Lucas realizam o Censo no Brasil, tendo o Uruguai do outro lado da avenida – Foto: Felipe Prestes/IBGEBandeiras de Brasil e Uruguai revelam a integração entre os cidadãos dos dois países em Livramento e Rivera – Foto: Felipe Prestes/IBGECom a cuia de chimarrão em mãos, Antônio Miranda recebe o IBGE – Foto: Felipe Prestes/IBGEA recenseadora Luciana conversa com a dona de casa Lenir, que vive no Bairro Divisa, a poucos metros do território estrangeiro – Foto: Felipe Prestes/IBGEMarco Aurélio Costa, o recenseador mais velho de Livramento, entrevista a doble chapa Silvia Jacqueline – Foto: Felipe Prestes/IBGEMarcos de fronteira ajudam a traçar as linhas imaginárias que dividem Uruguai e Brasil – Foto: Felipe Prestes/IBGENo Bairro Divisa muitos logradouros têm traçado irregular e os marcos de fronteira são essenciais para saber em que país se está pisando – Foto: Felipe Prestes/IBGEFilho de palestinos, o comerciante Raed Shweiki explica que as fronteiras possuem um comércio dinâmico, fator de atração de imigrantes de origem árabe – Foto: Felipe Prestes/IBGEDe acordo com o Censo de 2010, 0,38% da população de Livramento professava o Islã, percentual muito mais significativo que a média brasileira, de 0,02% – Foto: Felipe Prestes/IBGENascida na Palestina, a supervisora do Censo Luana foi assim batizada graças às novelas brasileiras – Foto: Felipe Prestes/IBGELuciana e Lucas realizam o Censo no Brasil, tendo o Uruguai do outro lado da avenida – Foto: Felipe Prestes/IBGE
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“Aqui é Brasil ou Uruguai?”, pergunto a Anderson Rodrigues Paz, que está fazendo reparos em um caminhão. “Acho que é Brasil”, responde, olhando para o marco que sinaliza a fronteira. Fico curioso para saber se, para ele, tanto faz. “A pé, sim. De caminhão, não, por causa da documentação”, explica.

Além dos marcos de fronteira, o IBGE tem seus próprios métodos para evitar que erros aconteçam. Os dispositivos móveis de coleta (DMCs) – equipamentos semelhantes a um smartphone utilizados pelos recenseadores – captam as coordenadas geográficas e, quando o recenseador tenta abrir um questionário fora de seu setor censitário, ele é alertado pelo equipamento. Recenseadores e supervisores também vão a campo com mapas impressos de seu setor.

Existem regras para que o recenseador jamais erre o seu percurso. Ele deve sempre começar de um ponto específico de sua área de trabalho e andar com o ombro direito voltado para os domicílios e o esquerdo para a rua. No caso de Santana do Livramento, setores mais suscetíveis a alguma dúvida estão sendo recenseados com muita precaução e sempre com suporte da coordenação do Censo na cidade.

Uruguaios, brasileiros e doble chapas

Mas, voltando ao trabalho do Lucas e da Luciana, logo no primeiro domicílio de seu percurso são recebidos por uma moradora uruguaia. Trata-se de um armazém com moradia nos fundos. A moradora e dona do estabelecimento atende a equipe do IBGE com gentileza e responde ao questionário, mas diz que não gosta de dar entrevistas à imprensa. Virando a esquina alguns minutos depois, em um apartamento com vista para o Parque Internacional, a também uruguaia Selva Rodriguez Perazza conversa com a reportagem da Agência de Notícias do IBGE.

Aposentada da prefeitura de Rivera, Selva morou a vida toda no Uruguai. Porém, após o falecimento do esposo, mudou-se para o Brasil para ficar mais perto do filho, que vive em Livramento e tem cidadania brasileira além da uruguaia – cidadãos que a população local chama de doble chapas por terem os dois documentos. “Ele me disse: mamá, venha para o Brasil. É mais lindo, vais ter uma vista linda. Ficou mais fácil para vê-lo. Me encanta o Brasil, ia para Florianópolis quando podia. Agora não porque estou enferma. Eu vejo os canais (de televisão) brasileiros”, conta. Para Selva, o fato de serem dois países diferentes é quase irrelevante no dia a dia da população. “As cidades estão tão irmanadas que nem te dá conta”.

A recenseadora Luciana comenta que tem entrevistado muitos uruguaios, sendo recebida com gentileza, embora alguns acreditem que não precisem ser recenseados. “Eles acham que não precisam ser contados no Censo por serem uruguaios. Então a gente explica que, se mora em Livramento, precisa ser contado”.

O idioma não é uma barreira para o entendimento. “Tem pessoas que vêm aqui que acham diferente. Para nós que moramos aqui, que nos criamos aqui, é normal. Falamos as duas línguas, a gente tá acostumado já”, explica o aposentado Antônio Miranda. O brasileiro nos recebeu no portão de casa no bairro Divisa, segurando a cuia do chimarrão e falando em bom português.

A alguns metros dali, a dona de casa Lenir conversa do portão de sua residência, de onde pode ver o Uruguai do outro lado da rua. A brasileira entrecorta o português com expressões como bueno ou no más. “É muito bom, a gente tem como se fosse uma cidade só. O senhor vê que eu falo uma mistura. A gente aqui vive assim”. O marido de Lenir é uruguaio, mas sempre trabalhou no Brasil. O casal mora há 18 anos do lado brasileiro e morou 23 anos no país que começa do outro lado da rua. “Meu filho é só brasileiro e meu neto é só uruguaio”.

No bairro Divisa, a reportagem acompanhou o trabalho de Marco Aurélio Costa, de 75 anos, o mais velho recenseador de Livramento. “É uma experiência muito boa, porque a gente interage com várias pessoas, e dá um acréscimo para a gente como cidadão, a gente vê a realidade, os contrastes”, conta. Natural da cidade fronteiriça, Marco Aurélio viveu 28 anos em Pelotas (RS), onde trabalhou na indústria e lecionou Estatística. Retornou há dois anos para Livramento, ou melhor para Rivera. “Eu moro em Rivera e minha esposa é uruguaia”, conta.

Dentre os entrevistados por Marco Aurélio está a doble chapa Silvia Jacqueline. Nascida no Uruguai, Silvia mora há 20 anos no Brasil com o marido e ambos obtiveram o documento brasileiro alguns anos depois de se estabelecer em Livramento. “Temos casa aqui e nos ajuda bastante ter o documento brasileiro”.

Sant’Ana do Livramento fica equidistante das capitais do Rio Grande do Sul e do Uruguai. Cerca de 500 quilômetros a separam de Porto Alegre e de Montevidéu. Possui uma área de quase 7 mil km² – o segundo município mais extenso do Rio Grande do Sul – de bioma pampa, propício para a pecuária. O município tem o maior rebanho de ovinos do país, com mais de 400 mil cabeças. Também são cerca de 400 mil cabeças de gado, o que deixa Livramento entre os 50 municípios brasileiros com maior rebanho bovino, segundo dados da Pesquisa da Pecuária Municipal de 2021.

Na área urbana, o turismo se destaca graças aos freeshops do lado uruguaio, onde brasileiros podem comprar produtos livres de impostos, o que atrai pessoas de todo o Rio Grande do Sul. A atividade turística, contudo, costuma oscilar junto com o câmbio. Se o real está valorizado, mais turistas procuram a cidade. Por outro lado, quando o peso uruguaio está valendo mais, são os uruguaios que atravessam a fronteira para fazer compras no comércio de Livramento. A dinâmica do câmbio também afeta o setor imobiliário, por isso muitos em Livramento apostam que o número de moradores uruguaios na cidade vai ser maior no Censo 2022 do que em 2010, já que está mais barato para os uruguaios viverem no Brasil.

No Censo de 2010, havia 1.279 brasileiros naturalizados em Santana do Livramento. Além disto, havia também 3.810 estrangeiros. Assim, 6,17% da população da cidade não era nascida no Brasil. O número é bem maior que a média brasileira: no país todo, apenas 0,31% havia nascido fora do país.

Do Oriente Médio ao Censo nos pampas

Mas nem todos os estrangeiros e brasileiros naturalizados vêm do Uruguai. Assim como em diversas cidades fronteiriças do Brasil, Santana do Livramento tem uma significativa colônia árabe.

“Aqui é um comércio muito dinâmico. Quem gosta de comércio, e, geralmente, o árabe gosta, se instala em fronteiras, e não só no Rio Grande do Sul”, explica Raed Shweiki, comerciante e vice-presidente da Associação Comercial e Industrial de Livramento (ACIL). “As fronteiras são grandes portos terrestres. Foz do Iguaçu tem uma grande migração de comunidade árabe, porque geralmente tu consegues fazer um comércio mais fácil. Em Livramento tu vais ver num final de semana, muitos uruguaios vindo do interior do Uruguai para comprar aqui e aí tu vês que é atrativo para quem trabalha com o comércio”, completa.

Raed não está entre os mais de 3 mil estrangeiros da cidade. Nasceu no Brasil, filho de pai palestino e mãe jordaniana. A loja em que recebe a reportagem ocupava antigamente apenas parte do imóvel, noutra parte a família morava. “Tu começavas antigamente como mascate, fundava a lojinha e ia evoluindo. Nós morávamos nessa loja. Então a loja era praticamente um quarto do que é hoje. E aí depois ampliou a loja, abrimos outra, e assim vai”, conta. Do outro lado da fronteira, a colônia árabe também é proprietária de grande parte dos freeshops.

O comerciante explica que a comunidade árabe já está na quarta geração em Livramento, mas que seguem vindo mais imigrantes de países como a Síria, que passa por um conflito. “A primeira leva foi de imigrantes libaneses. E os palestinos vieram depois da guerra, da criação do Estado de Israel (em 1948). Agora tem vindo pessoas da Síria. Geralmente as pessoas saem quando tem alguma instabilidade no seu país ou alguma perseguição religiosa, uma perseguição política. As novas gerações já não trabalham apenas com o comércio. Há médicos, advogados, engenheiros”, conta.

De acordo com o Censo de 2010, havia 311 pessoas que professavam o Islã em Livramento. O número, embora pequeno (corresponde a 0,38% da população do município), é muito mais significativo que a média brasileira. No país todo, apenas 0,02% da população era muçulmana em 2010. Cabe ressaltar que nem todo o árabe é muçulmano, há muitos cristãos. Raed estima que haja cerca de 800 a mil pessoas oriundas de países árabes e seus descendentes na cidade.

A supervisora do Censo 2022 Luana Halima Gandhe Judeh é uma delas. Nascida na Palestina há 23 anos, migrou para a América do Sul em 2011. Primeiro morou em Rivera e atualmente vive em Livramento, e tem três nacionalidades: palestina, uruguaia e brasileira.

“Luana é um nome brasileiro, porque minha avó queria, ela assistia às novelas brasileiras”, conta. A avó já tinha morado no Brasil anteriormente, depois retornou à Palestina. “Meus avós vieram para cá em 1948, quando a guerra começou a apertar um pouco mais. Passaram por Uruguaiana, Santa Rosa, Canela, Quaraí (todas as quatro, cidades do Rio Grande do Sul)”. Em 2011, os pais de Luana decidiram retornar à fronteira entre Brasil e Uruguai em busca de melhores condições de vida, trabalhando com o comércio. “Meu pai resolveu voltar para a fronteira porque tinha o movimento dos uruguaios, porque tinha o comércio”. Uma tia de Luana trabalha no setor comercial em Uruguaiana, cidade gaúcha que faz fronteira com a Argentina.

Tendo chegado ao país em 2011, Luana nunca tinha visto um Censo Demográfico acontecer. “Eu não sabia da existência do Censo. Quando saiu o concurso do IBGE eu fui compreender o que era. Acabei entrando em busca de uma experiência. Eu sou formada em Direito, me formei neste ano, e achei que talvez minha bagagem fosse ajudar de alguma forma”, analisa, enquanto caminha para mais uma entrevista a serviço do Brasil.

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