Apesar das últimas iniciativas do governo para destravar linhas de crédito e de a Federação dos Bancos do Brasil (Febraban) ter divulgado balanço com a liberação de quase R$ 1 trilhão, o crédito para as micro e pequenas empresas continua represado nos bancos, que cobram taxas altas, exigem garantias de quem está parado há mais de 60 dias e barram o acesso de quem precisa dos recursos para sobreviver na pandemia do novo coronavírus. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, reconheceu, em audiência no Senado, que há “um descompasso entre a oferta e a demanda de crédito”.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) frisou, em uma rede social, que “infelizmente todos sabem que apenas uma ínfima parte do dinheiro chegou na ponta. A grande maioria dos empreendedores ainda está sem acesso ao dinheiro”.
Essa é a situação dos empresários Tiago Gusmão, da CT Amigos do Esporte, uma escola de ginástica artística e judô; e Roneison Souza Campos, administrador das empresas Sibrax e NetcomService, provedora e fornecedora de serviços para provedores de internet, e a construtora Ipê Construções. Os dois empreendedores estão tentando, desde o início da pandemia, obter recursos para garantir fluxo de caixa com a paralisação e ou devido à redução do número de clientes, mas sem sucesso junto a bancos privados e públicos. A promessa do governo para eles é que o dinheiro dos empréstimos chegue nos próximos dias.
Com a escola fechada desde 18 de março, Tiago conta que precisa de cerca de R$ 300 mil para arcar com custos como aluguel de dois ginásios (nos bairros Buritis e Padre Eustáquio) e o pagamento dos salários de 23 colaboradores (nenhum foi dispensado) e pagar contas, ou seja, ter fluxo de caixa. Mas não consegue os recursos junto aos bancos particulares e nem mesmo junto aos públicos. “Busquei crédito, mas encontrei juros de 2,4% a 3% ao mês e isso significa que se eu pegasse R$ 100 mil teria que pagar R$ 300 mil. Já nos bancos públicos, a exigência de garantia inviabiliza o financiamento, porque para tomar R$ 300 mil emprestados é preciso dar R$ 300 mil de garantia”, afirma Gusmão.
Para manter a empresa, Tiago Gusmão conta que passou a oferecer atividades e aulas on-line e reduziu os valores das mensalidades para reter parte dos alunos. “Eu tive uma primeira conversa com os pais porque no primeiro momento percebi perda de 40% dos alunos”, diz o empresário. Ele informa que havia acabado de investir R$ 100 mil em novos equipamentos de ginástica e estava adquirindo álcool em gel para continuar operando quando vieram as medidas de isolamento social. O proprietário da CT Amigos do Esporte diz que tem a perspectiva de obter o crédito de que precisa com juros de 0,5% ao mês, mas tendo que alienar em garantia uma casa na região da Pampulha.
Roneisom Campos não precisou fechar as empresas que administra, mas viu a demanda pelos serviços cair. Ele vem avaliando linhas de crédito e buscou os recursos prometidos pelo governo, mas não conseguiu o dinheiro. “São recursos para fluxo de caixa. Nossa atividade não parou, mas teve um pouco de queda e a inadimplência aumentou”, diz o empresário, ao informar que a provedora de internet Sibrax tem cerca de 1.200 clientes. Nas três empresas, Campos diz que são 20 empregados e que apenas dois que estavam em experiência não tiveram o contrato prorrogado. Nos bancos nos quais procurou o crédito a resposta foi sempre que a linha de empréstimo não estava disponível.
“Na Caixa eu não tive nem retorno”, diz Roneison, que pleiteia o equivalente a 30% do faturamento das empresas no ano passado, mas prefere não revelar o valor. Ao recorrer ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o empresário conta que disseram a ele que seria necessário um convênio com o governo que ainda não estava assinado para liberar recursos do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe). O projeto, aprovado pelo Congresso em 25 abril, só foi sancionado em 19 de maio, dois meses depois da interrupção das atividades da CT Amigos do Esporte.
Fundo Garantidor
Até o último dia 10, passados mais de 20 dias da sanção presidencial, praticamente nenhum centavo dos R$ 15,9 bilhões em crédito especial liberados pela linha de empréstimo foi liberado para as empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil (microempresas) e R$ 4,8 milhões (de pequeno porte). A taxa de juros da operação está fixada na Selic (hoje em 3% ao ano) com acréscimo de 1,25%.
O Ministério da Economia anunciou que o Fundo Garantidor de Operações (FGO) vai liberar R$ 15,9 bilhões do Tesouro Nacional para empréstimos a pequenos negócios no âmbito do Pronampe. “Nossa maior preocupação, agora, é viabilizar crédito para as empresas”, disse o secretário de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa. “Esse é o momento em que capital de giro é o mais importante”.
O prazo para pagamento do empréstimo será de 36 meses. Os bancos que aderirem ao programa entrarão com recursos próprios para o crédito, a serem garantidos pelo Fundo Garantidor de Operações (FGO-BB) em até 85% do valor. A estimativa é de que o crédito poderá atingir 4,5 milhões de micro e pequenas empresas, segundo nota do Ministério da Economia. Também poderão ser beneficiados os microempreendedores individuais (MEI). Segundo o governo, haverá garantia de 100% de cada operação até o limite de 85% da carteira de cada agente financeiro. “É praticamente sem risco para as instituições financeiras”, afirmou Costa.
A despeito do otimismo do governo, a Febraban informou também na quarta-feira que “as medidas de crédito que o governo editou com garantia do FGI e do FGO são recentes e ainda dependem de ajustes para atendimento legal das regras estabelecidas nestes programas. A Febraban já iniciou as análises necessárias e há toda disposição do setor bancário em aderir para ajudar o Brasil a preservar empregos e empresas. A Febraban não informou, no entanto, a partir de quando os bancos vão começar a operar com a linha de crédito do Pronampe. Segundo o Banco do Brasil, gestor do FGO, 12 instituições financeiras já iniciaram o processo de habilitação para operar com a linha emergencial.
Documentos
O governo aposta na oferta de garantia para destravar o crédito para as micro e pequenas empresas e os MEIs, mas a barreira ao crédito vai além da garantia. Na sua peregrinação por crédito, Tiago Gusmão, da CT Amigos do Esporte, conta que em um banco ele chegou a ouvir que não liberariam recursos para atividades ligadas ao esporte. “Estão negando empréstimos para empresários do esporte pois os bancos afirmam que seremos os últimos a reerguer. Com esse pensamento, de crise e de que seremos os últimos, vão fechar mais se 60% dos negócios do esporte”, avalia o empresário. “Mesmo com garantias reais eles falam que banco lida com dinheiro, as garantias são imóveis e veículos. Eles querem a certeza de receber as parcelas e ficam na dúvida por conta da retração do mercado”, acrescenta Tiago.
Além da avaliação quase subjetiva de gerentes, os microempresários esbarram na burocracia. Como o empréstimo equivale a 30% da receita bruta de 2019, empresários que não tiverem sua contabilidade em dia podem ficar excluídos da ajuda do governo. A Receita Federal informou que está enviando comunicado a 3,8 milhões de micro e pequenas empresas com a informação da receita bruta, com base na declaração desses contribuintes ao fisco.
Economistas veem problema estrutural
O problema do crédito para as micro e pequenas empresas no Brasil esbarra em questões estruturais que dificultam naturalmente o acesso a financiamentos, avaliam economistas. Uma dessas dificuldades é a quase informalidade de muitas microempresas e Microempreendedores Individuas (MEIs), que têm problemas com controle da contabilidade, histórico de dívidas e pouco relacionamento com as linhas de financiamento do sistema financeiro. A economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), Daniela de Britto, lembra que a análise de concessão de crédito é individualizada e no momento há um aumento significativo da percepção de risco com a elevação da inadimplência e a perspectiva de insolvência de empresas.
“As empresas que já tinham dificuldades de acessar o crédito, que é o grupo de microempresas que têm um processo mais informal, com dificuldades de demonstrar balanço, já não tinham acesso e vão continuar tendo o pedido de crédito negado. Não é porque o banco não quer. A maioria dessas empresas tem problema histórico com capacidade de pagamento e a perspectiva é de quebra”, afirma Daniela.
O mesmo raciocínio é feito pelo consultor econômico da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), Nicola Tingas. “Em um ambiente de recessão forte, se você não tem condições de mostrar fluxo de caixa futuro e garantias ou condição de mostrar que você vai poder pagar o empréstimo é muito difícil conseguir a concessão de crédito” diz o economista. Ele lembra que, para o banco, na análise de risco vai ficar demonstrado que esse perfil é um candidato a se tornar perda.
Os economistas lembram que os bancos estão mais restritivos por causa da crise do novo coronavírus e a perspectiva de inadimplência elevada. “Os bancos não estão dispostos a captar recursos ou buscar do acionista poque ele precisa ser remunerado e ter liquidez. Então, os bancos ficam mais restritivos por uma necessidade de liquidez”, diz Daniela de Britto. “Não tem como, em nível de compliance (regra de conduta), em nível de política da entidade financeira, ela conceder crédito para quem presumivelmente é um alto risco”, afirma Tingas. Além disso, como o risco está mais alto, também as taxas de juros ficam mais altas. Com a Selic a 3% ao ano, os bancos chegam a cobrar esse percentual ao mês, o que dá 42,57% ao ano.
Ajuda
Prevendo que parte das micro e pequenas empresas não consigam acesso ao crédito, Nicola Tingas defende que o governo, assim como ajudou os trabalhadores informais com o auxílio emergencial de R$ 600, crie um mecanismo para ajustar as empresas mais fragilizadas. “Essas modalidades de ajudar aqueles mais vulneráveis, seja pessoa física, seja micro e pequenas empresas que não têm capacidade de tomar o crédito exatamente pelas restrições de que elas mesmas têm, precisam ser o dinheiro público. Ele é que tem que ajudar nesse momento”, afirma o economista. Daniela de Britto lembra que o Orçamento da União cria dificuldade para uma ajuda direta por causa da definição dos beneficiários e dos valores.
“O governo tem muita dúvida, mas, por que não injeta dinheiro nas empresas que precisam. É só fazer uma seleção através das instituições de crédito”, destaca a economista-chefe da Fiemg. Segundo o economista da Acrefi, o ministro da Economia, Paulo Guedes, já admitiu criar uma ajuda para as empresas via Receita Federal. “O Paulo Guedes está pensando em fazer crédito para micro e empresas sem pedir volta. A volta seria a empresa no ano que vem pagar os impostos”. A ajuda seria para as 3,8 milhões de empresas participantes do Simples Nacional que precisarão ficar fechadas durante a pandemia.
Tanto Daniela quanto Tingas lembram que nos Estados Unidos o governo está injetando dinheiro nas pequenas empresas depois que os bancos não conseguiram fazer o dinheiro liberado pelo Tesouro norte-americano chegar a elas. Inicialmente, foram liberados US$ 600 bilhões para companhias de pequeno e médio porte e, em abril, outro pacote de US$ 349 bilhões em empréstimos perdoáveis para micro e pequenas empresas, que precisam apenas manter a folha de pagamento em dia para usar os recursos sem precisar pagar por eles. “Nos Estados Unidos fizeram pacotes enormes para ajudar essas pequenas empresas. O próprio governo europeu agora está fazendo grandes pacotes também”, reforça Tingas.