Testemunhas de Jeová podem recusar tratamentos médicos que envolvam transfusão de sangue de terceiros e hemoderivados. A possibilidade foi aberta após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na última quarta-feira (25). Com isso, aqueles que seguem a crença também podem pedir ao governo o custeio de um tratamento médico alternativo e específico ao poder público. A decisão acontece após o julgamento de dois recursos extraordinários, um de Alagoas e outro do Amazonas.
Mas por que as Testemunhas de Jeová recusam tratamento com sangue e hemoderivados? O BNews se debruçou sobre o tema e faz agora um apanhado geral para que você entenda cada ponto.
Por unanimidade, os ministros do STF fixaram entendimento de que é legítima a recusa de procedimentos com uso de transfusão de sangue e ainda entenderam ser possível exigir do Poder Público a disponibilização e o custeio de tratamento alternativo, desde que o procedimento exista no Sistema Único de Saúde (SUS) e que a opção não gere “custos desproporcionais” ao poder público.
A partir de agora, a justiça brasileira, ao se deparar com situações idênticas nos estados, deverá observar o que decidiu o Supremo e analisar os processos aplicando o mesmo entendimento, já que os casos julgados possuem repercussão geral.
Recursos
Alagoas
Um dos casos é o de uma mulher de Alagoas e envolvia a necessidade de uma cirurgia cardíaca através do SUS para substituição de válvula aórtica, na Santa Casa de Misericórdia de Maceió.
Mesmo diante da complexidade da cirurgia e da possível necessidade de receber bolsas de sangue, a paciente optou por fazer o procedimento sem transfusões e assumiu os riscos da decisão.
A unidade de saúde, entretanto, pontuou que a cirurgia somente seria feita se a mulher assinasse um termo de consentimento aceitando a realização de eventuais transfusões. Como não houve consenso entre as partes, a cirurgia foi desmarcada, o que motivou o processo judicial.
A justiça de Alagoas, tanto na primeira quanto na segunda instância, negou o pedido da paciente para que fosse assegurado que o procedimento ocorreria sem transfusões de sangue, alegando a falta de garantias de ausência de riscos para a mulher.
O recurso deste caso ficou sob a relatoria do ministro do STF Gilmar Mendes.
Amazonas
O outro recurso é oriundo do Amazonas, no qual um homem também optou por realizar uma cirurgia, neste caso ortopédica, sem transfusão de sangue se necessário.
Nas instâncias inferiores, o paciente conseguiu a garantia de que a ele fosse ofertado e custeado um tratamento alterantivo, mas foram apresentados questionamentos so STF.
A relatoria deste recurso era do ministro Luis Roberto Barroso, presidente do Supremo.
Decisão
Após analisar as alegações da paciente de Alagoas, o ministro Gilmar Mendes entendeu que deve ser permitido ao paciente “no gozo pleno da sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde por motivos religiosos”.
E emendou: “A recusa a tratamento de saúde por razões religiosas é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive quando veiculada por meio de diretiva antecipada de vontade”, afirmou o ministro.
No recurso do processo do paciente do Amazonas, Luis Roberto Barroso afirmou que “por se tratar, a interdição à transfusão de sangue, de um dogma das pessoas que professam a crença das Testemunhas de Jeová, é legítima a recusa”.
Barroso defendeu ainda o custeio de outra opção de tratamento pelo Estado para o cidadão que não tiver condições de arcar com os custos.
“Existindo tratamento alternativo no âmbito do próprio SUS, parece fora de dúvida que ele seja oferecido ao paciente nessas circunstâncias. Portanto, há um dever do Estado, desde que isso não represente um ônus desproporcional. Sendo o paciente hipossuficiente, que não têm condições financeiras favoráveis, é razoável e proporcional o custeio do deslocamento e da permanência pelo tempo necessário na localidade da instituição que oferece o procedimento”, completou.
Ficou decidido ainda que a negativa deve ser manifestada por um paciente maior de idade, capaz e com condições de discernimento, de forma expressa, livre, voluntária, autônoma e sem coação, ficando proibido outra pessoa, que não o paciente, decidir sobre o tratamento.
Nos dois casos, tanto Barroso quanto Mendes foram acompanhados pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Edson Fachin.
O ministro Dias Toffoli não participou do julgamento porque está de licença médica.
Ao final, o placar foi de 10×0 em ambos os recursos.
Menores de idade
Um ponto polêmico nessa discussão era a possibilidade de pais Testemunhas de Jeová negarem tratamento com sangue e hemoderivados para seus filhos menores de idade por conta das convicções religiosas.
Quanto a este aspecto, Luis Roberto Barroso defendeu que a rejeição à doação de sangue apenas deve acontecer se houver tratamento alternativo eficaz atestado por avaliação médica.
“A recusa de transfusão de sangue somente pode ser manifestada em relação ao próprio interessado, sem estender-se a terceiros, inclusive e notadamente filhos menores. Porém, havendo tratamento alternativo eficaz, conforme avaliação médica, os pais poderão optar por ele”, ressaltou.
O que diz a religião?
Segundo as Testemunhas de Jeová, que formam uma religião cristã com quase 1 milhão de adeptos no Brasil, a recusa a tratamentos médicos com sangue de terceiros e hemoderivados é mais uma questão religiosa do que médica, já que, de acordo com elas, a bíblia, tanto no Velho como no Novo Testamento, ordena a abstenção de sangue. Para exemplificar, citam algumas pssagens bíblicas, como:
Deuteronômio 12:23: “Mas nunca comam o sangue, pois o sangue é a própria vida, e vocês não podem comer carne com o sangue que lhe dá vida”
Além disso, os adeptos também entendem que, para Deus, o sangue representa a vida, e, por isso, evitam tomar sangue por qualquer outra via, por questões de obediência a Deus e de respeito a ele como único doador da vida.
O que diz a legislação brasileira?
A Constituição Federal de 1988 prevê como direito fundamental e garantia consitucional a “liberdade religiosa” ao defender que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção dos locais de culto e suas liturgias”.
A liberdade de consciência é a liberdade de foro íntimo da pessoa; a liberdade de crença diz respeito à opção por uma determinada religião ou por nenhuma; e a liberdade de culto tem relação com a prática dos ritos, de culto, manifestações, reuniões, cerimônias, princípios e convicções, seja na esfera privada ou pública.
Embora já existisse essa previsão constitucional desde 1988 quanto à liberdade religiosa, a recusa a tratamento com sangue e hemoderivados sempre gerou discussões porque a Constituição também garante o direito à vida, à dignidade humana e à saúde, e muito se discute sobre quais deles é ou seria mais importante.
Entretanto, o texto constitucional não faz comparação entre esses direitos fundamentais e nem os classifica em uma escala hirárquica, não apontando qual é o mais ou menos especial.
Por este motivo, não há como se discutir, por exemplo, que os direitos à vida e à saúde são mais importantes do que o à liberdade religiosa e, por esta razão, o paciente deveria ser obrigado a aceitar tratamento com sangue.
O que dizem as entidades
Logo após a finalização do julgamento dos recursos, as Testemunhas de Jeová Brasil publicaram uma nota afirmando que “a decisão fornece segurança jurídica aos pacientes, às administrações hospitalares e aos médicos comprometidos em prover o melhor tratamento de saúde, sempre respeitando a vontade do paciente”.
Ainda segundo os religiosos, a decisão do STF “está em sintonia com as deliberações de tribunais em diversos outros países, como Reino Unido, Itália, Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Argentina, Colômbia e Chile entre outros — além de estar respaldada por organismos internacionais, como a Corte Europeia de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
As Testemunhas de Jeová Brasil destacaram ainda que “amam a vida e colaboram ativamente com os profissionais de saúde para receber o melhor cuidado médico possível. Manifestam sincera gratidão a esses profissionais e às autoridades que reconhecem e protegem seu direito de escolha em tratamentos médicos. Elas confiam que a cooperação, o respeito mútuo e a comunicação eficaz são fundamentais para que, juntos, médicos e pacientes enfrentem com êxito os desafios da saúde”.
Ouvido pelo BNews, o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), Otávio Marambaia, comentou a orientação dada aos profissionais de saúde baianos e destacou que, na atuação médica, a vontade do paciente deve ser sempre respeitada.
“A princípio, a autonomia do paciente deve ser respeitada e deve ser informado a ele o resultado das decisões. O fato de dar sangue e não dar sangue é mais uma questão que se estabeleça na Lei a salvaguarda do médico que pode ser acusando posteriormente por omissão de socorro. Mas, o médico deve, na medida do possível, atender aos desejos do paciente, excluindo aquelas questões em que o paciente esteja em risco iminente de morte”, disse.
Sobre o profissional médico ter algum problema de consciência em relação ao tratamento, Marambaia ressaltou que o paciente e a família devem ser imediatamente informados.
“O médico que tiver dificuldade de consciência deve informar a família e ao paciente os problemas de consciência dele, que pode ser de ordem religiosa também, de modo que o paciente tenha acesso a outro médico. Se só houver um único médico ele terá de atender ao paciente e vai ter que fazer os cuidados do paciente de acordo com as normas vigentes”, destacou.
Em relação à decisão única da equipe médica, o presidente do CREMEB ponderou que ela pode ocorrer se o paciente não estiver consciente e se não houver conhecimento da expressa recusa do doente, seja por um documento ou pela informação de algum familiar.
“Em casos cujo paciente esteja desacordado e não tenha nenhum parente para informar ou algum documento falando sobre as diretivas antecipadas de vontade. Neste caso, o médico tomará todas as medidas que forem necessárias para que o paciente sobreviva”, afirmou Marambaia.
Ele ainda apontou que nenhum médico pode ou deve desistir do paciente.
“Nenhum médico tem o direito de desistir do paciente. Desistência de paciente não existe para a medicina e nem para o médico. O que nós não podemos fazer é medidas que são claramente distanasia, ou seja, que simplesmente prolongam a vida do paciente sem qualidade e sem possibilidade de cura, sem efetivo benefício para o paciente. O médico deve ter sempre em mente o Código de Ética Médica, que, no seu artigo 32, fala que o médico deve usar de todos os meios cientificamente reconhecidos para o benefício do paciente. Esse deve ser o lema básico do médico, mas o médico tem que respeitar a vontade do seu paciente”, pontuou.
Fonte: BNEWS