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Flávio Dino descarta censura a shows de Roger Waters no Brasil

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou neste sábado (10) que não há possibilidade de censura prévia aos shows no Brasil do músico britânico Roger Waters, 79 anos, cofundador e ex-integrante da icônica banda inglesa Pink Floyd.

O artista está em um giro mundial com a turnê This is Not a Drill, e que vem ao país para uma série de apresentações, em outubro e novembro, em cinco capitais: Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.

A declaração de Dino foi uma resposta a matérias veiculadas na imprensa de que um integrante da Confederação Israelita do Brasil (Conib) teria entrado com uma petição no ministério para pedir que o músico seja impedido de fazer sua performance, que teria suposto conteúdo de apologia ao nazismo.

“Ainda não recebi petição sobre apologia a nazismo que aconteceria em show musical. Quando receber, irei analisar, com calma e prudência”, escreveu o ministro em uma postagem no Twitter.

Em seguida, ele alertou de que “consoante a nossa Constituição, é regra geral que autoridade administrativa não pode fazer censura prévia, sendo possível ao Poder Judiciário intervir em caso de ameaça de lesão a direitos de pessoas ou comunidades”.

Na postagem, Flávio Dino lembrou ainda que, no Brasil, é crime, “sujeito inclusive a prisão”, a veiculação de “símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, que podem ter pena de dois a cinco anos de reclusão.

A turnê
Anunciada como “a primeira turnê de despedida” de Roger Waters, a This is not a Drill já percorreu dezenas de cidades na América do Norte e Europa, lotando arenas, e virá à América do Sul no segundo semestre, para shows em ao menos 5 países, que serão realizados em grandes estádios de futebol.

O concerto traz uma experiência sonora e cinematográfica que perpassa boa parte da carreira do Pink Floyd, incluindo músicas de seus principais álbuns: Dark Side of The Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979). E é justamente sobre esse último álbum, um dos mais populares da história da banda, que reside a suposta polêmica envolvendo o que seria uma menção ao nazifascismo, que o músico faz como crítica.

The Wall
O álbum duplo The Wall é um dos discos de rock mais vendidos da história, com 19 milhões de cópias em todo mundo até os anos 1990. Virou filme em 1982, estrelado por Bob Geldof e dirigido pelo aclamado diretor Alan Parker, que dirigiu obras como Mississipi em Chamas (1988).

Trata-se de uma ópera rock complexa que explora ideias sobre abandono, isolamento e megalomania. Concebidas por Waters, as músicas falam da vida do protagonista Pink, vivido por um garoto que perdeu o pai na Segunda Guerra Mundial, na luta contra o nazifascismo, cresceu com essa ausência, foi oprimido na relação com uma mãe superprotetora e uma escola que tolhia a criatividade.

Esse contexto é retratado em canções conhecidas do disco, como In The Flesh, Mother e Another Brick in The Wall Pts. 1 e 2. Tudo isso são tijolos (bricks) colocados sobre o muro (The Wall), que é a metáfora para a parede de dores emocionais construída pelo protagonista.

Na vida adulta, Pink se torna um astro de rock, e expressa as opressões por meio de violência, comportamento perturbado e abuso de drogas. É neste momento que, em um acesso de alucinação, ele se vê como um ditador totalitário e explode em uma performance que remete ao comportamento de um autocrata nazifascista. Tudo isso é retratado artisticamente tanto no filme quanto nos shows que Waters, com e sem o Pink Floyd, executa há mais de 40 anos em turnês pelo mundo.

O músico não usa símbolos nazistas no palco. Os trajes trazem uma simbologia de dois martelos cruzados que embute uma crítica a regimes autoritários de toda a espécie, incluindo o stalinismo. Na história do disco, Pink sai da alucinação, vai a julgamento pelos seus crimes e, ao final, o muro é completamente destruído no palco, como que destruindo as opressões sociais que moldam a humanidade.

Na vida real, Waters é órfão de pai que morreu na Segunda Guerra, em 1944, lutando pelo Exército britânico contra os nazifascistas na Itália. O músico tinha apenas um ano de idade. Seu avô por parte de pai morreu na Primeira Guerra Mundial lutando pelo exército britânico.

Performance histórica
Essa forte simbologia pessoal e artística levou Roger Waters, por exemplo, a se apresentar em junho de 1990 em Berlim, tocando a íntegra de The Wall, com participação de dezenas de músicos convidados, apenas oito meses após a derrubada do muro que separava a cidade em Berlim Ocidental e Oriental, que é tido como um marco do fim da chamada Guerra Fria, com a dissolução da então União Soviética.

Encomendada pela prefeitura da capital alemã, a apresentação reuniu mais de 350 mil pessoas. Nela, Waters fez a mesma performance que agora é alvo de críticas. Ele usa um casaco negro, com uma braçadeira vermelha com símbolo de martelos cruzados, quando vive a alucinação de um demagogo fascista, como descreve Waters, no que sempre foi lido como uma clara manifestação antiautoritária.

Há algumas semanas, na mesma capital alemã, ele sofreu pressões para cancelar suas apresentações na cidade. O músico chegou a postar uma nota oficial classificando como “ataques de má-fé”.

“Minha recente apresentação em Berlim atraiu ataques de má-fé daqueles que querem me caluniar e me silenciar porque discordam de minhas opiniões políticas e princípios morais. Os elementos de minha performance que foram questionados são claramente uma declaração em oposição ao fascismo, injustiça e fanatismo em todas as suas formas. As tentativas de retratar esses elementos como algo diferente são dissimuladas e politicamente motivadas. A representação de um demagogo fascista desequilibrado tem sido uma característica dos meus shows desde The Wall do Pink Floyd em 1980”, escreveu. A polícia da capital alemã chegou a abrir um procedimento investigativo contra Waters, ainda em curso.

Na turnê This Is Not a Drill, Waters faz duras críticas ao governo do Estados Unidos por ter protagonizado e patrocinado guerras ao redor do mundo. Ele também faz uma defesa enfática da causa palestina, exibindo nomes de vítimas atingidas pelas forças de defesa de Israel no conflito, que assola o Oriente Médio há décadas.

Ele exibe no telão os nomes de Anne Frank, a adolescente judia que morreu em um campo de concentração nazista, e de Shireen Abu Akleh, jornalista com cidadania palestina e estadunidense do canal Al Jazeera que morreu em uma operação israelense no ano passado.

Também aparecem Sophie Scholl, da Rosa Branca, movimento de resistência alemã antinazista, morta em 1943, Mahsa Amini, que morreu após ter sido detida pela polícia da moralidade no Irã, no ano passado. Além de George Floyd, morto sufocado pela polícia dos Estados Unidos, no que desencadeou uma série de protestos organizados pelo movimento Black Lives Matter (vidas negras importam).

“Passei minha vida inteira falando contra o autoritarismo e a opressão onde quer que os veja. Quando eu era criança, depois da guerra, o nome de Anne Frank era frequentemente falado em nossa casa, ela se tornou um lembrete permanente do que acontece quando o fascismo não é controlado. Meus pais lutaram contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, com meu pai pagando o preço final. Independentemente das consequências dos ataques contra mim, continuarei a condenar a injustiça e todos aqueles que a cometem”, acrescentou.

Essa mesma performance foi executada por Waters em quatro shows no Brasil em 2012. Sua última vinda ao país foi em 2018, na turnê Us+Them, que ocorreu durante o segundo turno das eleições presidenciais que levou à vitória de Jair Bolsonaro.

Na época, Waters exibiu no telão o nome do então candidato chamando-o de neofascista, ao lado de nomes como o de Viktor Orbán, presidente da Hungria, e o do ex-presidente dos EUA, Donald Trump. A exibição desses nomes dividiu o público de uma apresentação em São Paulo, entre os que vaiaram e os que apoiaram a crítica à ascensão de governos de direita.

Causa Palestina
O pano de fundo envolvendo a atual controvérsia com Roger Waters tem ligação com sua intensa militância pela causa Palestina no Oriente Médio. O artista é um dos nomes mais conhecidos do movimento global BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), uma plataforma que envolve ativistas, artistas, intelectuais e movimentos sociais que coordenam campanha de boicote artístico, acadêmico, econômico e cultural contra o governo de Israel.

O objetivo da iniciativa é pressionar Israel a conter as violações de direitos humanos cometidas contra a população palestina, alvo de ocupação de seu território e de um impasse até hoje não solucionado para a criação de dois Estados, em termos definidos pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), mas jamais colocados em prática.

Em 2015, Waters chegou a enviar uma carta pública aos músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso, para demovê-los, sem sucesso, de uma apresentação que fariam em Tel-Aviv naquele mesmo ano. A mesma tentativa ocorreu em 2019, quando da apresentação de Milton Nascimento em Israel.

Mais recentemente, em 2020, antes de iniciar a atual turnê – que acabou sendo adiada para 2022 por causa da pandemia de covid-19 – a Liga de Baseball dos Estados Unidos (EUA) chegou a cancelar a divulgação dos shows do artista após pressão de grupos de advogados judeus críticos ao artista.

Na Alemanha, o Conselho da cidade de Munique aprovou, em 2017, uma proibição à realização de eventos do movimento BDS em locais públicos, considerando a atuação do grupo como antissemita.

A Agência Brasil tenta contato com a Confederação Israelita do Brasil, citada no início da reportagem, mas ainda não obteve retorno

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