fbpx

Festival Katxá Nawá Hô Hô Ika fortalece tradições e intercâmbio de culturas na Aldeia Boa União, em Feijó

escendo alguns quilômetros pelas águas do rio Envira, a partir de Feijó, na margem esquerda, algumas embarcações de madeira indicam que há grupos de visitantes chegando para o Festival Katxá Nawá Hô Hô Ika, do povo Huni Kuî, na Aldeia Boa União. Antes de ancorar, praias de areia branca, barrancos e galhos de árvores revelam que o Envira está mais seco que o costume neste verão amazônico. Mas isto não foi impedimento para a chegada de grupos que somaram entre 500 e mil pessoas, segundo estimativa das lideranças locais, no festival que aconteceu neste último final de semana.

“Os jovens fazem a festa acontecer”, conta o cacique Josimar Matos Kupi Huni Kuî sobre o fortalecimento da cultura do povo, durante a décima edição do Festival Katxá Nawá Hô Hô Ika. A festividade que entrou em janeiro, pela primeira vez, no calendário oficial de eventos do Estado, tem um significado único para os Huni Kuî da Aldeia Boa União. O evento recebeu apoio do governo do Acre, por meio da Secretaria de Estado de Turismo e Empreendedorismo (Sete) e Secretaria de Estado de Comunicação (Secom) para sua realização.

“No cenário geral, o festival é o chamamento do espírito dos legumes, para fortalecer a agricultura familiar dentro da própria aldeia. E não deixa de ser uma forma de concentrar todo o povo, onde você vai ver seu amigo, seu parente, ter uma relação de intercâmbio”, apontou um dos líderes locais, Décio Biná Huni Kuî.

Para quem chega, o portal de entrada da festa com palhas ainda verdes mostra o cuidado de quem pensou em cada detalhe. Atravessando o pórtico, o caminho de terra em meio à grama verde leva ao terreirão, no centro da aldeia, onde os principais pontos da programação do festival acontecem, dia, noite e madrugada à dentro até o próximo nascer do sol.

Na chegada, cada visitante recebe o entrelaçamento de braços de dois membros da comunidade, levando-o ao centro, onde a dança tradicional acontece embalada pelo entoamento de Hô Hô, a canção dos músicos que comandam a festa. Os brincantes vão dançando ao redor da canoa e montagem de frutas e palhas de bananeira no centro da aldeia, até que os entrelaçados começam a oferecer banana prata e da terra aos visitantes, seguido da famosa matxú – ou caiçuma, bebida fermentada da macaxeira. E segue o baile.
Das celebrações que acontecem para cada novo grupo que chega, o cacique Josimar Matos Kupi Huni Kuî destaca a importância de fortalecer os costumes e tradições: “Na época do meu pai, não tinha a aldeia da forma que a gente vive hoje. Agora, através de pesquisa, nós temos livros construídos, da música, dos kenês, [como estudos] do professor Joaquim Maná. E as escolas estão dando incentivo para que as cantorias e as histórias não sejam extintas”.

Perguntado sobre como os anciãos contribuem para o fortalecimento das tradições, o cacique revela: “Aqui fazemos o contrário: ao invés de os velhos fazerem, são os jovens que fazem a festa acontecer”, pontua.

No centro da aldeia, o Katxá – a canoa onde foram colocados alimentos, tem uma representatividade única para o povo que compartilha diversas tradições e brincadeiras. “E aí tem várias competições de jogos tradicionais, do arco e flecha, da lança, do artesanato”, conta Décio Huni Kuî. Entre elas, também estão a do mamão e da macaxeira.
Na brincadeira da macaxeira, as mulheres precisam arrancar as macaxeiras (homens) plantadas na terra. Na do mamão, homens e mulheres disputam qual grupo está no comando com a posse do fruto, enquanto o outro tenta tomá-lo.

Nesta edição do festival, o governo do Acre, por meio da Sete e Secom, apoiou o evento com artes gráficas, impressão de banner e camisetas, além de divulgação e envio da representante da Sete, Adalgisa Bandeira e dos jornalistas Carlos Minuano e Ana Paula Nogueira, de São Paulo, para cobertura e conhecimento da cultura e medicinas tradicionais da comunidade, com foco principal na ayahuasca.

“A inclusão dos festivais indígenas no calendário oficial do Estado e o apoio do governo, por meio da Sete, vem exatamente com esse propósito de fortalecer as festividades tradicionais que já acontecem. No que pudermos ajudar, a Secretaria de Estado de Turismo e Empreendedorismo vai contribuir”, destacou o titular da Sete, Marcelo Messias.

“Eu estou me sentindo ótimo, agora ainda mais incorporado na força indígena Huni Kuî”, relata Carlos Minuano durante experiência com as pinturas tradicionais. O jornalista estuda a ayahuasca há mais de duas décadas, desde quando teve a primeira experiência com o chá há 25 anos. Desde então, tem como missão escrever sobre o tema desmistificando tabus.

Minuano escreve sobre o tema há mais de dez anos no portal UOL e em outras publicações nacionais e estrangeiras e é autor do blog Psicodelicamente da revista CartaCapital, que recentemente publicou uma reportagem sobre os festivais indígenas do Acre.

“A ayahuasca, para nós, é uma internet viva, porque através da internet você pesquisa tudo o que você quiser e a ayahuasca ensina o que você pretende aprender”, explica o cacique Josimar Kupi.

Nascida em Rio Branco, Samira Silva conta que os avós são da etnia Huni Kuî. Para manter a proximidade com a família, a jovem faz questão de visitar os parentes sempre que pode na aldeia Paroá, além de apreciar as festividades e aprender mais da cultura, como as pinturas. “Eu sou de Rio Branco, mas tenho parente na última aldeia e sempre a gente vem visitar aqui”, disse.

Ao lado de Samira, a pajé da medicina Aldenira Lima – Txaná Shã Kuan, na língua indígena – costuma fazer as curas e rezas, mas naquele momento, o seu trabalho principal era fazer os traços das voltas da dança indígena nos braços de Samira, revelando uma tradição passada de geração em geração: “A minha mãe fazia também. Eu aprendi com ela”, lembrou.

Amiga de Parã (filha do cacique Josimar Kupi), a carioca Luana Medeiros também foi uma das visitantes do festival Katxá Nawá Hô Hô Iká. Ela explica que participa e estuda trabalhos com a ayahuasca na cidade de Alto Paraíso, em Goiás, e que está no Acre desenvolvendo projetos de audiovisual, fotografia e estudo das medicinas da floresta.
“Nesses últimos quatro anos tenho trabalhado bastante com os povos daqui das etnias Huni Kui, Shanenawa e Yawanawá. Ano passado eu vim a primeira vez aqui para o Acre, fiquei dois meses com o povo Yawanawá, fiz dieta com eles e estudo um pouco maior das medicinas e aí estou retornando este ano. Semana passada eu vim conhecer a aldeia, fiquei hospedada na casa da família da Parã e ajudei um pouquinho nos preparativos do festival. E eles me convidaram para estar aqui junto, no festejo. Nesse meio tempo fui para outras aldeias, e retornei hoje para estar aqui celebrando”, explicou.

As medicinas da floresta foram essenciais para Vicente Alves Ferreira tomar a decisão de vir morar no Acre, há cinco anos. Natural de Riberão Preto, no interior de São Paulo, Vicente teve uma experiência profunda com a ayahuasca. A intenção era ajudar uma pessoa importante para ele e que estava precisando de ajuda. “Eu tomei pensando [em ajudar outra pessoa] e o recado foi para mim. Tomei a medicina […] e depois que passou tudo aquilo [as mirações e sensações], você vê que se aquilo ali não curasse, nada mais ia curar, e realmente curou”, relatou.

Depois da experiência inicial, Vicente procurou outras orientações para o uso da medicina da ayahuasca, até chegar um momento decisivo nos rumos da sua vida. “Chegou um ponto que eu falei: ‘eu quero aprender mais, eu tenho que ir para a fonte’. E eu sempre que senti que São Paulo não tinha nada para mim. Aí eu comprei as passagens e vim recomeçar no Acre”, contou.

Da Aldeia Nova Olinda, o cacique Carlos Robeni Shanê Huni Kuin e mais de trinta parentes foram os primeiros da comunidade a chegarem na Aldeia Boa União, após três dias de viagem. “Somos parentes de sangue, somos primos, eles vão para a nossa aldeia quando a gente convida e quando eles convidam, a gente faz o mesmo intercâmbio. Mais parentes vêm para a festa”, explicou.

Na Aldeia Nova Olinda o Festival da Troca de Sementes e Comidas Típicas é uma das festividades tradicionais da comunidade, principalmente em momentos de recuperação pós alagação. “É muito importante esse festival de troca de sementes principalmente depois que perdemos parte da nossa produção na alagação e a gente faz essa festividade para colher todas as novas sementes que cada um traz da sua aldeia e coloca ali e a gente faz a troca”.

Ainda fora do calendário oficial do Estado, o cacique explica que é de interesse do seu povo ter o apoio do governo estadual: “A gente tem a pretensão de poder encaixar a nossa festividade que a gente sempre faz com nosso próprio esforço da comunidade. E a gente pretende ter apoio do Estado e da Secretaria de Turismo, para nós é muito importante”, conclui Shanê.

Com o apoio do governo do Estado, Décio Huni Kuî acredita que o festival Katxá Nawá Hô Hô Ika deve crescer e receber cada vez mais turistas de fora. “É a primeira vez que recebemos apoio do Estado, mas precisamos de mais para estruturar nosso espaço. Queremos transformar o nosso lago em espaço de passeio, temos uma trilha no meio da floresta, para conhecer e ouvir o que a natureza oferece para quem participa do festival”, explica.

Festival fomenta economia da aldeia
Para os membros da Aldeia Boa União, o festival fomenta a economia e fortalece a cultura local, a exemplo do artesanato que representa diversos significados da força e do espírito e dos seres da floresta em colares, brincos, pulseiras, anéis, além de cestarias e vestimentas.

“A gente trabalha com vários artesanatos, usando semente, miçanga e palha. O olho da curica, que é das mulheres, traz a visão, explica a artesã Djane Txima Inani Huni Kuî. Segundo ela, é o primeiro ‘kenê’ [desenhos indígenas] que as mulheres têm que aprender a fazer, o formato do desenho da folha expressa bom pensamento e traz sabedoria.
Segundo a artesã, o artesanato é feito para presentear os amigos, vender para os visitantes e, ainda, comercializar fora da aldeia. É uma atividade que ainda pode ser explorada mais, diz ela. “A gente manda para uma pessoa vender fora da aldeia, mas fazemos mais para aqui mesmo”.

Neste artigo