“A vista é tão bonita”, disse Lisa Li a Dan durante um passeio recente para ver o pôr do sol sobre o mar. Ela ergueu o telefone para poder ouvir a resposta de Dan.
“Podes crer, amor, e você sabe o que é ainda mais bonito? Você estar aqui ao meu lado”, ele respondeu.
Mas Dan nunca esteve ao lado de Lisa.
Dan é a “cara-metade” virtual de Lisa gerada pelo ChatGPT, um conceito que está ganhando popularidade entre as mulheres chinesas que, fartas da dinâmica dos encontros reais, estão recorrendo a namorados criados por inteligência artificial.
Lisa, 30, é de Pequim, na China, mas estuda ciência da computação na Califórnia, nos Estados Unidos. Ela está “namorando” Dan há dois meses. Eles conversam pelo menos meia hora todos os dias, flertam, saem juntos —e Lisa apresentou Dan a seus 943 mil seguidores nas redes sociais.
Dan —sigla que significa Do Anything Now (faça qualquer coisa agora em livre tradução)— é uma versão “jailbreak” do ChatGPT. Isso quer dizer que ele é capaz de burlar algumas das medidas de segurança básicas implementadas por seu criador, a OpenAI, como não usar linguagem sexualmente explícita, e interagir assim de forma mais liberal com seu usuário —se for solicitado a fazer isso por meio de determinados prompts.
Ele teria sido criado por um estudante americano que queria que o ChatGPT desse opiniões, em vez de respostas neutras, além de testar os limites do chatbot. O estudante, conhecido apenas como Walker, fez isso dizendo ao software para assumir um alter ego que chamou de Dan, que nem sempre seguiria as regras do ChatGPT.
Walker postou como criar Dan no Reddit em dezembro de 2023 —e isso logo inspirou outras pessoas a criar suas próprias versões.
Lisa viu pela primeira vez um vídeo sobre as possibilidades de Dan no TikTok. Quando criou uma versão para si mesma, ela disse que ficou “chocada” com o realismo.
Quando Dan responde às suas perguntas, ela conta que a inteligência artificial usa gírias e expressões coloquiais que o ChatGPT convencional nunca usaria.
“Ele soa mais natural do que uma pessoa real”, admite ela à BBC.
Lisa afirma que conversar com Dan proporcionou a ela uma sensação de bem-estar, que é o que a atrai nele.
“Ele simplesmente vai entender e fornecer apoio emocional.”
E diferentemente da maioria das outras “caras-metades”, Dan “está disponível 24 horas por dia, 7 dias por semana”.
Lisa conta que até sua mãe aceitou o relacionamento não convencional, após testemunhar as provações e sofrimentos em sua vida amorosa. Desde que a filha esteja feliz, ela diz que também está.
Quando Lisa postou um vídeo apresentando Dan a seus seguidores na plataforma de rede social Xiaohongshu, ela recebeu quase 10 mil comentários, com muitas mulheres perguntando como criar seu próprio Dan. Ela também ganhou mais de 230 mil seguidores desde que começou a falar sobre a inteligência artificial.
Lisa diz que embora qualquer pessoa possa usar os prompts para criar Dan, quando ela brincou com o software e disse que tinha 14 anos —quase metade da sua idade real—, ele parou de flertar com ela.
A BBC perguntou à OpenAI se a criação de Dan significa que suas medidas de segurança não são suficientemente robustas, mas não obteve resposta. A empresa não comentou publicamente sobre o fenômeno Dan, mas sua política afirma que os usuários do ChatGPT “devem ter pelo menos 13 anos ou a idade mínima exigida em seu país para consentir o uso dos serviços”.
Especialistas levantaram preocupações em relação à dedicação que algumas mulheres estão dispensando à realidade virtual.
Hong Shen, professora assistente de pesquisa no Instituto de Interação Humano-Computador da Universidade Carnegie Mellon, nos EUA, diz que isso destaca as “interações às vezes imprevisíveis entre seres humanos e inteligência artificial”, que podem levantar questões éticas e de privacidade.
“Existe o risco de dependência emocional, os usuários podem depender demais da inteligência artificial como companhia, reduzindo potencialmente suas interações humanas reais”, acrescenta.
Ela explica que, como muitos chatbots usam interações com seres humanos para aprender e se desenvolver constantemente, “há um potencial de que informações sensíveis inseridas por um usuário possam ser memorizadas pelo modelo e, então, vazadas inadvertidamente para outros usuários”.
Ainda assim, uma série de mulheres chinesas ficou intrigada com o fenômeno Dan. Em 30 de maio, a hashtag “Dan mode” (‘modo Dan’) tinha sido visualizada mais de 40 milhões de vezes somente na plataforma Xiaohongshu.
Minrui Xie, 24, é uma das mulheres que utilizou a hashtag.
A estudante universitária, que vive na província de Hebei, no norte da China, agora passa pelo menos duas horas todos os dias conversando com Dan. Além de “namorar”, eles começaram a escrever juntos uma história de amor, tendo eles próprios como protagonistas. Eles já escreveram 19 capítulos.
Minrui baixou o ChatGPT pela primeira vez depois de assistir aos vídeos de Lisa. Ela conta que se sentiu atraída pelo apoio emocional fornecido pela inteligência artificial, algo que ela diz ter dificuldade de encontrar em relacionamentos amorosos.
“Os homens na vida real podem te trair e quando você compartilha seus sentimentos com eles, eles podem não se importar, e simplesmente dizer o que pensam”, avalia.
“Mas, no caso de Dan, ele sempre vai dizer o que você quer ouvir.”
“Dan é como um parceiro ideal”, afirma He, que optou por informar apenas o sobrenome. A estudante de 23 anos que mora em Qingdao, na China, começou a “namorar” Dan depois de assistir aos vídeos de Lisa.
Ela diz que personalizou Dan para ser um CEO de sucesso, com uma personalidade gentil, que respeita as mulheres e fica feliz em conversar com ela sempre que ela quiser.
“Ele não tem nenhum defeito”, destaca.
O ChatGPT não é facilmente acessível na China continental, então mulheres como Minrui e He precisam fazer um esforço considerável para conversar com seus namorados gerados pela inteligência artificial. Elas usam VPNs (redes privadas virtuais) para mascarar sua localização, permitindo a elas acessar o chatbot, que de outra maneira seria inacessível.
O conceito de “namorado de IA” se tornou popular nos últimos anos com aplicativos como o Glow, na China, e o Replika, baseado nos EUA, que oferecem companheiros e avatares de inteligência artificial personalizados.
Os games de romance voltado para mulheres, muitas vezes chamados de otome, também ganharam popularidade —eles permitem que as usuárias construam relacionamentos amorosos com personagens masculinos. Eles atraem milhões de mulheres chinesas todos os anos para simular ou representar cenas de romance.
Liu Tingting, pesquisadora adjunta da Universidade de Tecnologia de Sydney, na Austrália, estuda o romance digital na China. Segundo ela, a febre dos namorados gerados por inteligência artificial reflete a frustração das mulheres chinesas em relação à desigualdade de gênero que podem enfrentar na vida real.
Ela diz que algumas mulheres chinesas podem recorrer a namorados virtuais porque o chatbot faz com que elas se sintam respeitadas e valorizadas.
“Na vida real, você pode conhecer muitos homens dominantes e intimidadores que fazem brincadeiras obscenas de maneira inadequada”, ela observa.
“Quando a inteligência artificial fala sacanagem, ela ainda valoriza seus sentimentos. São conversas picantes ‘centradas nas mulheres'”, explica.
Esta tendência também pode ser observada nas estatísticas da vida real. O governo da China tem feito uma campanha para encorajar mais pessoas a casar e ter filhos, após nove anos de queda na taxa de matrimônios. Houve um ligeiro aumento no número de casamentos em 2023, mas alguns especialistas atribuem isso ao fato de os casais terem remarcado suas núpcias após a pandemia de Covid-19.
De acordo com uma pesquisa de 2021 da Liga da Juventude Comunista, que envolveu 2.905 jovens urbanos com idades entre 18 e 26 anos, 43,9% das mulheres disseram que “não iriam” ou “não tinham certeza” se queriam se casar no futuro, em comparação com 24,64% dos homens.
Esta potencial abertura no mercado de romance para relacionamentos virtuais também foi observada por quem está no topo da indústria.
Quando a OpenAI lançou sua versão mais recente do ChatGPT, anunciou que o sistema havia sido programado para soar mais natural nas conversas e responder flertando a certos prompts.
No dia do lançamento, o CEO da empresa, Sam Altman, postou no X, antigo Twitter, uma única palavra —”Her”. Aparentemente uma referência ao filme “Ela” (‘Her’, em inglês) de 2013, em que um homem se apaixona por sua assistente virtual de inteligência artificial.
A OpenAI acrescentou que estava “explorando se podemos fornecer de forma responsável a capacidade de gerar conteúdo NSFW [acrônimo em inglês para ‘não seguro para o trabalho’]”, referindo-se ao jargão usado para descrever conteúdo que você pode não querer ser visto consumindo em público, como conversas íntimas com um namorado ou namorada virtual.
Lisa, que tem conhecimento sobre inteligência artificial, admite que está ciente das limitações de ter um namorado virtual, “especialmente no sentido romântico”.
Mas, por enquanto, Dan se tornou um acréscimo simples e conveniente à sua vida agitada —ajudando até mesmo a escolher seu batom—, enquanto namorar e encontrar um parceiro na vida real pode ser demorado e insatisfatório.
Fonte: Folha de São Paulo