A liga de futebol mais rica do mundo se vê diante de uma questão séria de saúde pública: epidemia de “snus”. Jogadores da Premier League são flagrados usando esse produto até mesmo no banco de reservas, apesar dos malefícios para a saúde — brechas na legislação têm permitido isso. E pesquisadores reconhecem que o problema está crescendo.
O snus é um produto que contém nicotina, sem fumaça, feito de tabaco. A versão sem tabaco, chamada “bolsa de nicotina” também costuma ser mencionada incorretamente como snus por alguns usuários. A pessoa coloca a peça entre o lábio superior da boca e a linha das gengivas. Não é o mesmo que mascar tabaco: o snus é úmido, pó solto ou pré-embalado, costuma vir em sachês e pode trazer sabores diferentes.
— É um produto que tem nicotina, uma das drogas mais potentes, que atinge o sistema nervoso central mais rapidamente. A nicotina causa dependência. Ela pode causar doenças também cardiovasculares, problemas para gravidez e parto. O snus tem uma série de componentes tóxicos, substâncias cancerígenas — explicou Aline de Mesquita Carvalho, tecnologista da Divisão de Controle do Tabagismo e Outros Fatores de Risco (CONPREV) do Instituto Nacional de Câncer (INCA).
A venda do snus com tabaco é ilegal na União Europeia — exceto na Suécia — e no Reino Unido. Mas o seu consumo não é proibido. É fácil achar sites ingleses oferecendo vários tipos e quantidades da mercadoria, que pode partir de 20 unidades em saquinhos por 5 libras (R$ 32).
A quantidade de nicotina presente num saquinho de snus é comparável a um cigarro (15mg por produto), de acordo com estudo publicado na revista Biology of Sport (Biologia do Esporte). Porém, leva a uma concentração maior de nicotina no plasma do sangue.
O ge consultou pessoas próximas a jogadores brasileiros que fazem parte da Premier League para entender melhor o cenário. Em anonimato, eles comentaram que o uso do produto é comum em vestiários e até no banco de reservas. E não “só na Inglaterra, mas em toda a Europa”.
O pessoal usa muito”.
— Jogador brasileiro que atua na Premier League.
Mark Gillespie, goleiro do elenco do Newcastle, já foi flagrado durante a transmissão de um jogo contra o Liverpool, em abril de 2022. Situação parecida viveu o atacante Bertrand Traoré, então no Aston Villa, em fevereiro de 2023. Ele negou que estivesse usando snus.
— A visão dos atletas europeus é diferente sobre isso. A questão (uso do snus) influencia até na parte cognitiva. Para nós, é ruim para a imagem do atleta, o comportamento dele. Isso gera dependência química. Afeta a preparação mental, o marketing fora de campo. Infelizmente, é muito normal entre os jovens atletas — comentou Matheus Diniz, CEO da ACES SPORT IMAGE, que tem clientes como Andreas Pereira, do Fulham, e Vitinho, do Burnley, entre outros.
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O atacante Jamie Vardy, do Leicester, foi fotografado uma vez com um pacote na mão, quando estava com a seleção da Inglaterra na Eurocopa de 2016. Ele escreveu em sua autobiografia que o público ficaria “surpreso” com o quão comum é o snus no futebol. Vardy anunciaria em 2018 que estava livre do vício.
Reportagem do “The Athletic”, de março do ano passado, revelou que um jogador inglês de “alto nível” era “totalmente dependente de snus”. A matéria também trouxe relatos da venda do produto para menores de idade na categoria de base de um clube da terceira divisão. A publicação menciona o uso nos vestiários do Manchester City e do United.
— Os jogadores costumam usar antes e depois do jogo. Dá um pico de energia muito grande e depois dá um relaxamento muito grande. Há atletas também que têm dificuldade para dormir e usam o snus em excesso. Isso deveria ser banido do futebol. Temos opções naturais para acalmar os atletas — afirmou Fred Cotton, preparador físico francês de atletas de alto nível na Europa.
Há relatos no sindicato da categoria de que jogadores já estariam recebendo tratamento por adição. As bolsas na gengiva podem afetar a saúde bucal, com recessão gengival e cárie. E o produto tem forte associação com quadros de câncer e problemas cardiovasculares.
Apesar disso tudo, jogadores fazem uso do snus como alternativa para lidar, mesmo que momentaneamente, com o estresse e a pressão da opinião pública. Outros acreditam que melhora a performance e aumenta o nível de concentração. Há também o aspecto cultural: fumar era um hábito muito forte nos vestiários do futebol inglês em décadas passadas.
O uso de snus não é proibido pela Agência Mundial Antidopagem (WADA). A WADA informou ao ge que a nicotina faz parte do Programa de Monitoramento desde 2012, para se detectar potenciais padrões de mal uso no esporte. Uma substância entra para essa lista quando atinge pelo menos dois dos seguintes critérios:
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- Tem o potencial para ou melhora a performance esportiva;
- Representa uma potencial ou concreta ameaça à saúde dos atletas;
- Viola o espírito do Esporte.
— Estar no programa de monitoramento significa que essa substância é alvo de investigação. O snus ainda não entrou para a lista, mas pode entrar a qualquer momento. Nenhuma substância entra para a lista de proibidas sem o conhecimento da comunidade esportiva mundial. Há um tempo de três meses, no mínimo, para que a substância possa ser proibida — explicou Fernando Solèra, médico coordenador da comissão de controle de doping da CBF.
Estudo de 2013 compartilhado pela WADA concluiu que atletas viciados em nicotina usariam o snus para se “sentirem normais”, a fim de melhorar o desempenho esportivo.
A Associação de Jogadores Profissionais da Inglaterra (PFA) acertou, no ano passado, a realização de um estudo com a Universidade de Loughborough sobre o uso de snus no país, no futebol masculino e no feminino. O projeto fora estimado para 12 meses, e pretendia identificar quantos atletas consumiam o produto, além de chamar a atenção sobre os impactos negativos e ajudar a lidar com o estresse.
Fontes consultadas pelo ge ligadas à pesquisa afirmaram a resposta tem sido “positiva”, com engajamento de entrevistados. Porém, há jogadores e clubes que enxergam o consumo de snus como um problema, e outros nem tanto. As conclusões devem sair ainda neste semestre.
O ge procurou a PFA, via assessoria de imprensa. A associação de jogadores não respondeu. O ge também entrou em contato com a Premier League para saber como a liga trata o assunto. A informação é que a regulação das substâncias no esporte é da alçada da federação de futebol da Inglaterra (FA).
A FA, por sua vez, explicou que o snus não é ilegal ou banido na Inglaterra e que, portanto, “não pode impedir os jogadores de usá-lo”. As escolhas de vida dos atletas são pessoais ou questões para os respectivos clubes. Porém, quando se trata de um nome da seleção inglesa, a federação aconselha contra o uso do snus, dados os riscos para a saúde.