Tácita Muniz
A frase “você não é todo mundo”, assim como em mim, deve perpetuar sua infância quando a gente visita alguma lembrança ou está entre amigos contando as peripécias da infância. Em casa, meus quatro irmãos e eu crescemos sob um olhar afetuoso de minha mãe, mas com muita disciplina e pulso forte de uma mulher, que tem como principal característica resistência e fortaleza.
Quando pequenos, ouvíamos com certa constância da minha mãe que não éramos todo mundo. E isso me acompanha até hoje, mas sob uma perspectiva diferente. Diante das imposições e fórmulas prontas que a sociedade tenta nos forçar a acreditar, eu recorro às palavras de minha mãe, que não sou todo mundo e tá tudo bem.
Há idade certa para se formar? Idade correta para se casar, separar, realizar um grande sonho, recomeçar? Todo mundo tem o mesmo tempo? Levamos, igualmente, o mesmo tempo para digerir e agir em nossos processos? Como indivíduos, cada um tem suas experiências e elas ditam nossas ações e a forma como lidamos com nossos (des)acontecimentos.
Dizem que passamos a entender nossos pais após termos filhos, mas, acredito que essa compreensão também vem com a maturidade. Quando revisito meus cenários da infância, tenho outra percepção daquela época. Achava minha mãe estressada, protetora demais ao ponto de não nos deixar, como ela diz, viver na casa dos outros ou ir em lugares que, adivinhem, todo mundo ia. Hoje, vejo que minha mãe estava fazendo o seu melhor, dividindo a tarefa de ser mãe, com plantões intermináveis dentro de um hospital, profissão que se dedicou por mais de três décadas.
Mesmo na correria do dia a dia, consigo recordar da minha mãe chegando com a roupa do centro-cirúrgico, checando tarefas, indo em nossas camas dar um beijo e perguntar como foi o dia. Minha mãe fez de tudo para que não tivéssemos lacunas da presença dela em nossas vidas. Entendo que, mesmo assim, ela devia se sentir culpada por não conseguir se doar mais.
E, por isso, recorro à frase que tanto é alvo de posts bem humorados os quais dizem que aprendemos a lidar com a frustração no momento em que nossas mães dizem repetitivamente que não somos todo mundo, para dizer que minha mãe não é todo mundo.
Técnica em enfermagem, ela conseguiu, ao lado do meu pai, criar os filhos com presença, vocês percebem a dimensão disso? Presença é ouro. Mesmo com a rigidez na nossa educação, minha mãe bolava no chão com os filhos, brincava de se esconder e fazia isso tão bem que pedíamos ajuda do meu pai e montávamos uma força-tarefa para a busca. Que nostalgia!
E a história da minha mãe já mostra que ela não é todo mundo. Gerou filhos não só na barriga, mas no coração. Sempre transbordou amor, doação, e se eu pudesse escolher apenas uma palavra para defini-la, seria humanidade.
Não é todo mundo que, mesmo sofrendo, incentiva os filhos a saírem de casa ainda adolescentes para focarem no estudo. Imaginem vocês, o “bafafá” que era, em cidade pequena, quando alguém, praticamente criança ainda, saía para estudar fora. Ela foi questionada por muitos e muitas vezes. Dizia que acreditava na educação que dava aos filhos e na relação que construiu ao longo do tempo. Às vezes, tento mensurar o medo da minha mãe, além da coragem e da força que teve para estar longe.
Mesmo distante, ela estava presente. Vinha com frequência na capital e fazia questão de acompanhar como estávamos na escola e na vida. Acho que, no fundo, minha mãe também estava apostando suas fichas e torcendo para dar certo… E deu.
Ser mãe, escuto, é cansativo, não tem férias de filhos, não existe isso. E nos dias mais difíceis de minha mãe, lembro que estávamos no banco de trás do carro ouvindo ela cantar as músicas preferidas, desde Milton Nascimento, Rita Lee a Emílio Santiago, ou a discografia do Roberto Carlos. Para a gente, naquela idade, era um passeio qualquer. Para minha mãe, hoje entendo que era sua válvula de escape: dirigir sem rumo enquanto cantava. Acho que era a tentativa de se reconectar com ela mesma.
Se impondo todos os dias como dona da sua vida, minha mãe me ensinava pelo exemplo. Imponente, ela me mostrava que ninguém podia ditar o que eu poderia ser. O homem nunca vai entender, mas a luta da mulher para comprovar sua competência é diária, constante e mais cansativa, garanto.
Foi nesse berço, cercado de fortaleza feminina, que cresci. Eu amava ver minha mãe com seu jeans, uma blusa masculina larga, sendo dona de si. E, ao longo dos anos, de acordo com nossas fases, as percepções que temos sobre nossos pais mudam.
Quando crianças, eles são nossos heróis, reduto, perfeitos e que sabem exatamente o que estão fazendo. Já quando crescemos, começamos a vê-los com suas imperfeições e suas falhas, mas o amor permanece. Quando estão mais velhos, o sentimento de cuidar deles nos invade. A vontade é retribuir tudo o que fizeram por nós, mas acho que isso é humanamente impossível.
Desde que saí de casa, na maioria das datas comemorativas estou longe fisicamente, mas sempre por perto no coração. Faço questão de dizer à minha mãe o orgulho que tenho dela, como a amo e como ela foi fantástica como mãe.
Sabe de uma coisa? De filha para mãe, obrigada por não ser todo mundo. Mais do que isso, obrigada por não me deixar ser todo mundo.
Tácita Muniz é comunicóloga, repórter na Agência de Notícias do Acre; trabalhou 11 anos na editoria do Portal G1 no Acre, encabeçando projetos envolvendo todos os estados. Também foi responsável por alimentar uma página com reportagens especiais sobre a Amazônia. É fã de rock, filmes, livros e boxe, além de aprendiz de escritora nas horas vagas.