As diversas transformações proporcionadas pelo aquecimento global podem impulsionar a transmissão de milhares de vírus entre espécies, facilitando o surgimento de novas doenças zoonóticas – aquelas que têm reservatório natural em animais e são transmitidas para o homem. As informações são de um estudo da Universidade de Georgetown, publicado na revista Nature, e confirmam as previsões de cientistas que estudam a evolução das espécies no Butantan.
“A Covid-19 deixou claro que existe uma interface sensível entre nós e os vírus, e essa mediação está nos animais que vivem na natureza. Quando o humano perturba esse ambiente há uma facilitação desses encontros. E estamos assistindo a uma invasão crescente dos habitats naturais, aumentando essa interface – particularmente no Brasil e em outros países megadiversos”, diz o pesquisador do Laboratório de Ecologia e Evolução do Instituto Butantan Otavio Marques, e doutor em zoologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Na maior parte dos casos, esse contato mais próximo denuncia um desequilíbrio. “Os morcegos hematófagos, importantes reservatórios naturais e transmissores do vírus da raiva, não eram tão comuns. Mas quando o homem abriu áreas para pastagem, introduzindo grandes rebanhos, a população da espécie Desmodus rotundus, que originalmente se alimentava do sangue de mamíferos e aves silvestres, explodiu. Algo que não aconteceu com outras duas espécies que se alimentam, preferencialmente, do sangue de aves. Isso tem levado a ocorrência de surtos de raiva em áreas rurais”, explica o também pesquisador do Laboratório de Ecologia e Evolução Hebert Ferrarezzi.
De acordo com a pesquisa da Nature, uma das primeiras a projetar como o aquecimento global aumenta o risco de transmissão viral entre espécies, até 2070 diversos mamíferos serão forçados a deixar seus ambientes naturais em busca de climas mais amenos. O Brasil aparece como um dos locais de risco por conta da sua enorme biodiversidade, junto com regiões da África, Índia e Indonésia.
Apesar de cinco décadas separarem os dias de hoje das projeções da pesquisa, o risco é atual e crescente. Diante das taxas de desmatamento e da consequente perda global de biodiversidade, a própria Organização das Nações Unidas (ONU) reforçou como as ações humanas influenciam o surgimento de novas pandemias em seu relatório da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES).
Isso porque alterações no uso da terra, expansão da urbanização, intensificação da agricultura e o comércio e o consumo de animais silvestres aumentam as chances de contato entre as pessoas e os agentes patogênicos presentes nas espécies. Segundo a publicação, cerca de cinco novas doenças aparecem anualmente, todas com potencial pandêmico.
“Atualmente, dispomos de mais de 11 milhões de genomas sequenciados do SARS-CoV-2, todos eles descendentes de um único ancestral comum, segundo as análises filogenéticas. Ou seja, um único ‘salto’ entre espécies, uma única infecção, que serviu como estopim para o início da pandemia”, explica Hebert Ferrarezzi. Até o final de junho de 2022, mais de 500 milhões de casos e seis milhões de mortes em decorrência da Covid-19 haviam sido confirmados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Saúde Única
Culpar a vida selvagem pelo aparecimento dessas novas doenças é inapropriado e está longe de ser a solução. Durante os surtos de Febre Amarela, em 2017, autoridades alertaram que muitos primatas foram executados pela própria população pelo medo de transmissão da doença. Conforme orientação da Fiocruz, esse tipo de ação prejudica a implementação de medidas preventivas, além de contribuir para a extinção das espécies e desequilibrar ainda mais o ambiente.
Uma das estratégias preconizadas pela OMS para transformar essa maneira como os humanos se relacionam com a natureza é a de Saúde Única (One Health, em inglês), que prevê uma conexão entre a saúde das pessoas, dos animais e do meio ambiente, integrando áreas como segurança alimentar, meio ambiente e o controle de zoonoses.
Para os especialistas do Butantan, a adoção de medidas mais sustentáveis é urgente principalmente na agricultura e na pecuária. Além disso, o monitoramento das espécies selvagens é ponto-chave.
“Os morcegos ocorrem em quase todo o mundo e carregam uma enorme diversidade de coronavírus. Apesar das nossas espécies nativas de morcegos não serem suscetíveis ao SARS-CoV-2, o vírus tem sido transmitido pelo próprio homem a diversos animais domésticos e selvagens cativos, em vários países. Há pelo menos uma espécie selvagem, o veado-de-cauda-branca americano, que já apresenta populações naturais contaminadas”, exemplifica Hebert Ferrarezzi.
Ainda de acordo com o especialista, o monitoramento de animais domésticos e silvestres é necessário, pois novas linhagens de SARS-CoV-2 podem se adaptar a outras espécies hospedeiras e se diferenciar o bastante para escapar das vacinas, mas serem próximas o suficiente para “retornar” aos humanos e causar novos ciclos epidêmicos.
Reduzir a frequência e o impacto das pandemias requer mudanças profundas em prol da conservação e restauração dos ambientes naturais. Embora muitas dessas medidas sejam caras e complexas, os custos para a implementação são menores quando comparados aos gastos com doenças emergentes, conforme o relatório IPBES.