Os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) das Terras Indígenas (TIs) são ferramentas importantes para a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída pelo Decreto nº 7.747, de 5 de junho de 2012, com o objetivo de garantir a proteção, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das TIs. Esses planos são elaborados pelos próprios indígenas e indicam acordos comunitários sobre a gestão dos territórios. Na TI Nawa, o PGTA, construído em 2018, foi atualizado no mês de setembro (de 16 a 20), em uma oficina organizada e coordenada pelas lideranças Nawa e pela Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), com a participação da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ) e apoio da Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas do Acre (SEPI).
Localizada no município de Mâncio Lima, a TI Nawa tem sua área afetada pela criação do Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), ocorrida em 1989. Diante da sobreposição do território pela Unidade de Conservação (UC), o PGTA prevê acordos de gestão integrada com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e também pretende contribuir como processo de regularização fundiária da TI, que iniciou em 2003 na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), sendo retomado em 2023 com a recomposição do Grupo Técnico (GT) Nawa na Funai. Dois anos antes, as lideranças Nawa iniciaram a autodemarcação do território, de acordo com os mesmos limites e extensões determinadas pela Justiça Federal, que decidiu pela redução de 30 mil hectares dos fundos da Terra Indígena Nawa para não dividir o PNSD.
Na oficina de atualização do PGTA, realizada em setembro na aldeia Novo Recreio, três temas foram incluídos no plano de gestão: fortalecimento das mulheres, fortalecimento das associações indígenas e mudanças climáticas. Os impactos de eventos extremos como seca e inundações foram amplamente discutidos pelas lideranças Nawa. “Estamos aqui falando dos igarapés e precisamos registrar que houve uma perda muito grande de igarapés devido as mudanças climáticas. Além da perda de peixes e dos nossos roçados. A terra está muito quente e não nasce, está tudo muito seco”, relata Lucíla Nawa. “Na questão da pesca, nós estamos vendo os peixes sumindo. Antigamente ninguém queria pegar piau, e agora vocês têm que sonhar para poder pegar um peixe. As águas estão se acabando e os lagos estão se aterrando, precisamos saber o que fazer para não perder as espécies de peixes que ainda temos”, completa Railson Nawa, cacique da TI Nawa.
Sobre a estiagem que neste ano afetou o território Nawa, Francisco Leonildes Pinheiro Nawa diz que são necessários novos modos de plantar e cuidado redobrado com manejo do fogo. “Até ano passado, em setembro, a gente queimava e o fogo ficava só ali onde queimava, pois o acero segurava. Neste ano o fogo se alastra e queima por debaixo da terra, nunca vi isso. Se tivesse um triturador não precisava queimar os paus grandes para poder plantar. A gente derruba uma área de mata para plantar. Quando derruba fica os paus grandes e tem que queimar para poder limpar e plantar, mas era controlado. Esse ano a terra está muito seca, se a terra não estiver molhada o fogo “anda”, se arrasta e queima dentro da mata, vai queimando”, explica. Além da seca, Francisco destaca o forte calor: “Nunca tinha visto essa mudança climática no Vale do Juruá. O calor bate mesmo e ninguém aguenta. As águas estão diminuindo bastante. Antigamente em julho a agosto, os igarapés ficavam secos, mas a água não se acabava. O [Rio] Moa nasce das águas das terras do Peru e antes a própria terra controlava as águas. Era uma terra fria. Hoje não é mais”, finaliza.
Acordos internos
As ações de monitoramento territorial comunitário que os Nawa vêm realizando desde 2020 também foram atualizadas no PGTA. Nos últimos anos, as atividades tiveram apoio do ICMbio, a exemplo do registro da fauna local por meio de câmeras que capturam o movimento dos animais cedidas pela gestão do PNSD. Com isso, as imagens dão conta de um aumento considerável de animais silvestres nas áreas de refúgio da terra indígena, que são áreas onde a caça só é permitida em poucos momentos no decorrer do ano.
“Se a gente for pensar bem, devemos cuidar de toda a nossa terra como uma área de refúgio, não caçar com cachorro e zelar para ter essa fartura. Aqui nesta aldeia nós passamos anos sem ver rastro de caça, porque antes caçaram muito com cachorro. Depois que abandonamos, começamos a ver rastro de várias espécies de animais”, explica Railson Nawa. Ele também destaca que, apesar da escassez de animais silvestres, o monitoramento da fauna revelou uma grande variedade de espécies. “Temos quati, raposa, onça, gato do mato, tamanduá bandeira, queixada, jacu, capivara, gavião real, espécies de macacos e temos até a cigana, que é um pássaro que quase não vemos pelas terras”, acrescenta. Contudo, os acordos apresentam tensões até que se encontre consensos. Nestes casos, é necessária a mediação para que as diferentes manifestações sejam recepcionadas na oficina de atualização do PGTA, garantindo o apoio e a aprovação de consentimento para distensionar e evitar conflitos. Em novembro, próxima etapa da atualização do PGTA, serão realizadas reuniões comunitárias e uma oficina de validação.
Atividades como o manejo e monitoramento de tracajá também tiveram destaque na atualização do PGTA, pois a TI Nawa é bastante invadida o que compromete a existência da espécie. A participação dos Agentes Agroflorestais Indígenas (AAFIs) da Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígena do Acre (AMAAIAC) contribuiu também com o debate em torno do manejo dos resíduos sólidos. Ficou acordado que é necessária a articulação com a educação escolar para mobilizar a juventude Nawa para os cuidados com o descarte do lixo. O PGTA indica uma série de ações e objetivos sobre os cuidados e descartes dos resíduos sólidos que devem ser cumpridos pelos indígenas e instituições públicas.Além de valorizar o conhecimento dos povos indígenas sobre os seus territórios, os PGTAs expressam o protagonismo e a autonomia indígena no estabelecimento de acordos internos e negociações sobre os usos da terra. Na TI Nawa, os mapas temáticos, junto com o trabalho de autodemarcação subsidiam as estratégias indígenas para o monitoramento e proteção do território.
Na oficina, foram atualizados os mapas da hidrografia, da caça, da vegetação, das invasões e ameaças, além dos mapas do extrativismo, e o mapa histórico. No mapa de ameaças e conflitos, os monitores e lideranças Nawa identificaram novas áreas e rotas para a prática de ilícitos e planejaram, com base no novo mapa, as atividades de vigilância e monitoramento.
“Especialmente na área de fronteira essas invasões têm se intensificado. Os invasores descem pelo igarapé Apuriné, em Boavista, e conseguem levar madeira e carne, utilizando um ramal que passa pela região 20, onde recebem carne para venda. Essa situação está causando grandes perdas para nós, pois os invasores estão retirando a caça e outros recursos. Além disso, a fronteira com Paxubal também tem sido um ponto crítico, com pessoas da Serra [do Divisor] se deslocando para cá. Fica impossível impedir a entrada deles, que vêm buscar caça dentro do nosso território e depois retornam. É fundamental que tenhamos um monitoramento eficaz de nossa área. Acredito que seria ideal realizar essa fiscalização a cada três meses, com uma equipe dedicada a identificar onde estão as invasões e o que está comprometendo nossos recursos”, diz João Nawa, presidente da Associação Nawa.
Francione Nawa, coordenador do grupo de monitoramento e vigilância, disse durante a oficina que os Nawa estão preocupados com as crescentes invasões e com possíveis conflitos. “Já ouvimos ameaças de invasores, e sabemos que a situação pode se agravar rapidamente. Quando estamos em atividade de monitoramento, levamos sempre um grupo grande, pois a segurança de todos é primordial. A comunidade é unida e trabalha em conjunto para enfrentar esses desafios. É importante manter essa união para combater as invasões e proteger nosso território. No final das contas, todos nós temos um papel crucial nesse processo”, explica. De acordo com Francione, as invasões estão se deslocando para áreas próximas à trilha de demarcação, e a fiscalização, que é feita por um número limitado de monitores, não consegue abranger toda a extensão da área. “A região é muito grande, e muitas vezes fica difícil monitorar todos os pontos críticos”, diz Francione Nawa.
A próxima etapa da atualização do PGTA da TI Nawa acontecerá em novembro deste ano, quando serão realizadas reuniões comunitárias e uma oficina de validação do plano. Ao final do encontro em setembro, ficou encaminhado que as lideranças Nawa, AFFIs e monitores, junto com a CPI-Acre, OPIRJ, ICMBio e AMAAIAC vão trabalhar em colaboração para ações de proteção territorial. “Reunir essas instituições na oficina já foi uma etapa de implementação do PGTA para fortalecer as parcerias na proteção territorial. Vimos o quanto é necessário avançar com os acordos de cooperação técnica. E foi o que pactuamos como entendimento das instituições com os Nawa. O grupo que faz o monitoramento é grande, está motivado, tem resultados. Esse trabalho vai crescer”, diz Vera OIinda Sena de Paiva, coordenadora executiva da CPI-Acre e uma das mediadoras da oficina de atualização do PGTA da TI Nawa. “Diante de tanta emergência no Acre, no Brasil e no mundo, não há lugar para se trabalhar isoladamente. Como os Nawa falaram várias vezes, durante a semana, eles estão de parabéns por conseguirem fazer uma reunião com pactuação concreta no território”, acrescenta.(Comunicação/CPI-Acre)