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“Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro” (Rei Salomão).

Todas as noites um cão late e grunhe em um passado distante. Os sons viajam através do tempo.

O dono do cão é um menino de 11 anos; tímido, magro, pardo, cabelos pretos, lisos e despenteados; olhar posto no horizonte como o de alguém que espera por algo em um mundo que sempre lhe foi estranho.

Cão e o menino na velha rodoviária, à margem do rio Acre, na hora de se separarem mergulhados em uma tristeza presente, confusa…nova. E por ser nova, uma experiência a ser vivida como dois estrangeiros em um novo lugar. A alegria de partir com toda a família do interior para uma vida melhor na capital foi completamente ofuscada pelo drama do deslocamento e separação.

O menino sentou-se na última janela de um velho ônibus empoeirado, sob um céu de dezembro de 1970, numa sexta-feira, sabia que não poderia levar o amigo. O cãozinho desesperado latia agitado lá fora.

Deixá-lo ali seria um ato de covardia e traição ao amor que havia entre eles. Mas não podia levá-lo. Por esse tempo, cães e humanos não andavam em ônibus juntos. Era a lei dos adultos que não mais lembravam do amor de seus cães na infância. Os homens são assim, ingratos!

O menino chorava um choro inconsolável. Soluçava a dor mais doída e aguda da alma, a dor da partida. Que sensação de vazio era aquela que nunca havia experimentado?

Dor que ele sentiria por toda a vida, andasse por onde andasse; a cada partida, a cada separação dos que viria a amar intensamente: Os avós, a mãe, o pai, os amigos…pensava ser uma maldição por ter deixado o cãozinho ali, na velha rodoviária, naquela manhã tragada pelo tempo.

Descobriu já homem feito que a maldição não era só dele, recaia sobre todos os homens que amam intensamente os que lhes são caros. A família, os amigos e os lugares em que viveram.

O ônibus deu a partida subindo a velha ladeira de chão, o cãozinho correu atrás latindo até não mais ser escutado. O menino apertava as mãos contra os ouvidos até não mais ouvir os latidos.

A viagem foi longa, cansativa, vazia e estranha; tudo era novo, mas a paisagem triste. Havia um buraco na alma. A poeira da estrada e do tempo aos poucos foi encobrindo tudo, só não apagou da memória a angústia daquela partida, companheira de sina por toda a vida.

A hora mais dolorosa sempre será a da partida. A morte é separação. É solidão. Por isso os cães curam a depressão dos humanos. A solidão é a principal carência dos humanos, por não descobrirem um propósito na vida, os cães nascem com propósito. Os cães de serem cães, os humanos se perdem, se transformam em inumanos.

Anos se passaram e o menino que agora volta à pequena cidade é um jovem que a vida fez; ousado e carregado de sonhos. Continua procurando algo, um sentido para a existência. Talvez o grande amor de sua vida…a busca por Deus é sua própria respiração.

Encontrou o cão na velha hospedaria de seu avô aos cuidados de amigos da família. Que alegria! Que momento mágico é o reencontro de almas que se amam. O tempo parou por segundos.  A força do amor pode congelar a realidade.

Foi um transbordamento de carinhos, afagos, cheiros e lambidas húmidas, lágrimas de contentamento. Reconheceram-se no olhar cheio de saudades, de ternura e afetos. Nada mais importava, eles estavam ali juntos, abraçando-se.

Como pode um animal compreender a dor e o desespero humano, perdoar uma infâmia?  “O amor apaga uma multidão de erros”, disse Jesus. Os cães amam? Ou é apenas instinto de proteção e convivência social da matilha?

Encontraram-se mais vezes sempre que o jovem voltava à cidade no verão, de férias. Por ocasião das últimas folgas, procurou pelo amigo e soube que tinha morrido atropelado por uma assassino que dirigia um jipe. Chorou intensamente, como no dia da partida na velha rodoviária que já nem existia mais. Agora era vez de o cão ir embora para sempre. É sina, destino…tudo que amamos vai embora um dia, para sempre.

…sim, nada é para sempre nesse mundo. Coisa nenhuma permanece. O rio do tempo arrasta tudo para o passado, para o esquecimento. Pensou no amigo cheio de vida, alegre, feliz e não esmagado no meio do asfalto. Encerrava ali sua paixão.

Anos e anos se passaram o menino se transformou em um homem experimentado, marcado pelas perdas, dores, decepções e mágoas na busca insaciável por um sonho de felicidade que ilude os homens desde que eles andam sobre a terra há milhares de anos.

Ainda hoje o cão late, grunhe e o afaga em sonhos, consolando o menino que vive na alma do homem. Menino que continua buscando a felicidade no futuro quando, na verdade, ela ficou lá atrás, no passado, nos momentos em que estavam juntos brincando, felizes, alheios ao tempo, ao vento, ao mundo e as dores da existência. Um tempo que não voltará jamais.

P.S. Pathos – Paixão, sentido oriundo da palavra grega que quer dizer sofrimento.

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