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Envio de soro antiofídico para regiões remotas da Amazônia pouparia R$ 40 milhões e 10 anos de vida de populações, diz pesquisa

Os acidentes com picadas de cobra na região amazônica brasileira custam pelo menos R$ 40 milhões aos cofres públicos e roubam dez anos de vida de populações indígenas e ribeirinhas por ano. Tal situação poderia ser revertida caso o soro antiofídico fosse aplicado diretamente nas unidades de saúde indígenas e de outras áreas remotas do Amazonas, evitando longos trajetos de barco e outros meios de transporte até hospitais de referência.

Essa é a conclusão do projeto intitulado SAVING – Snake Antivenoms Imunoglobulins Need to be Garanteed ou Soros antiveneno precisam chegar onde os pacientes estão, desenvolvido pela Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado da Universidade do Estado do Amazonas (FMT-HVD/UEA) em parceria com o Instituto Butantan.

“A incidência do ofidismo na região Amazônica é cinco vezes maior do que no resto do país e os custos disso chegam a US$ 8 milhões, desde o deslocamento e o tratamento do paciente, além dos custos das complicações sistêmicas, dos dias de vida perdidos e dos óbitos. Um alto custo econômico e social para o Brasil”, afirma o pesquisador-chefe do estudo Wuelton Monteiro, diretor de ensino e pesquisa do FMT-HVD.

O envenenamento por picada de cobra acomete quase 3 milhões de pessoas e mata pelo menos 138 mil todos os anos no mundo, além de causar prejuízos econômicos incalculáveis, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por isso, desde 2017 o acidente ofídico, ou ofidismo, faz parte da lista das 20 doenças tropicais negligenciadas da OMS e um plano estratégico foi elaborado para reduzir as mortes em 50% até 2030.

No Brasil, houve mais de 30 mil casos e ao menos 121 mortes por ofidismo em 2021, segundo o Ministério da Saúde, embora os dados sejam considerados subnotificados.

A Amazônia concentra grande parte destes casos. Em 2016, das 26.244 notificações do tipo, mais de 8,6 mil foram em estados do norte, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

Custos diretos e indiretos

A pesquisa mostrou que os custos totais de atendimento de acidentados por picadas de cobra no Sistema Único de Saúde (SUS) do Amazonas passam dos US$ 3 milhões (R$ 15 milhões, aproximadamente) ao ano, incluindo atendimento pré-hospitalização, internação, aplicação do antiveneno, consulta médica durante e após a alta, além dos atendimentos envolvendo possíveis comorbidades causadas pelo envenenamento.

Há ainda os custos indiretos, que envolvem o trajeto da equipe médica até o acidente e do paciente até o hospital, como todos os meios de transporte usados, além de possíveis medicações e alimentação antes da chegada, entre outros gastos, que chegam a custar em torno de US$ 4,6 milhões (mais de R$ 22 milhões).

São os idosos e os indígenas acidentados que mais evoluem para quadros graves na admissão hospitalar, geralmente vinculados à demora em conseguir o soro. Nestes casos, as principais complicações são insuficiência renal aguda e sangramento sistêmico, infecções bacterianas secundárias, necrose e síndrome compartimental, condições que prolongam o atendimento médico no SUS, aponta a pesquisa.

A proporção de casos de ofidismo moderados e graves também é mais prevalente na região norte do país, assim como a quantidade de pessoas que demoram mais de 3h para receber atendimento.

“Vimos que havia pacientes que usavam até sete meios de transporte para conseguir atendimento, indo a pé, de voadeira, ambulância, barco e até avião, em trajetos de 54, 96 horas, o que aumenta muito os riscos de morte, sequelas ou invalidez”, diz o pesquisador.

Aumento da cobertura

Os dados são resultado de um projeto-piloto que utilizou 800 frascos de soro doados pelo Butantan para aplicação em pacientes atendidos em 14 Polos Base, unidades de saúde de baixa e média complexidade, localizadas nas regiões do Alto Rio Negro e Alto Rio Solimões, a mais de mil quilômetros de Manaus (AM).

Ao estudarem a dificuldade de acesso ao soro e o aumento do ofidismo na Amazônia brasileira, Wuelton e sua equipe de pesquisadores perceberam que a chave para evitar mortes e sequelas pela demora no atendimento era encurtar as distâncias e aumentar o acesso.

O projeto passou a ter apoio do Ministério da Saúde e dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), que ajudaram na distribuição e no mapeamento de locais mais vulneráveis. Com base nessas informações, foram calculados os custos e as perdas que envolviam todo o ecossistema de distribuição e aplicação do soro, sendo que a maioria dos custos é paga pelo SUS.

Outra conta feita pelos pesquisadores mostrou que, diante de tanto tempo perdido na busca pelo soro, são desperdiçados 4.000 dias de vida – o equivalente a mais de 10 anos que poderiam ser poupados caso houvesse a possibilidade da distribuição de soro em mais unidades de saúde nestas localidades.

“Descobrimos que mesmo que conseguíssemos incluir soros em todas as unidades de saúde existentes na Amazônia, não conseguiríamos 100% de cobertura. Por outro lado, se conseguíssemos aumentar 30 unidades a mais com soro, escolhidas estrategicamente, aumentaríamos a cobertura de 42% a 72%, o que é muito”, conclui.

Primeiros passos

Na primeira fase do projeto, iniciada em março de 2023, centenas de médicos e enfermeiros dos Polos Base foram formados e já fazem atendimentos. “Fizemos treinamentos em auditórios, igrejas, em unidades fluviais, para os médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem aprenderem a identificar o acidente, fazer a anamnese, dosar e aplicar o soro correto”, conta Wuelton.

Um caso que gerou comoção entre os agentes de saúde e entre os próprios indígenas foi o soro administrado em uma criança indígena de 9 anos, picada dias antes por uma jararaca. Ela chegou a ficar em estado grave, mas uma equipe de enfermeiros treinada pelo programa conseguiu chegar até a aldeia da menina, a levou ao Polo Base Belém do Solimões e aplicou 12 ampolas que evitaram um fim trágico.

“Esse é o primeiro caso do Brasil de uma indígena tratada com o soro antiofídico, gentilmente doado pelo Butantan, dentro do distrito de saúde indígena. Os profissionais de saúde receberam muito bem a ideia de tratar na localidade e a população indígena também recebeu muito bem, e vem procurando as unidades de saúde quando são picados por serpentes”, detalhou Wuelton.

Segundo o pesquisador, a boa aceitação do projeto entre agentes de saúde locais e indígenas se deve ao conhecimento compartilhado de que o soro realmente evita casos graves e a morte de quem recebeu uma picada de cobra.

“Muitos indígenas já foram tratados e temos muitos casos significativos mostrando de fato a importância de ter o soro nestas regiões. Casos graves que precisavam do soro pela demora de deslocamento e que foram tratados nas unidades e se recuperaram rapidamente após a administração, já que este é uma emergência de saúde e que precisa ter atendimento o mais rápido possível”, detalhou.

Os pesquisadores pretendem seguir com novas etapas de testes em outras regiões remotas do Amazonas e até em outros estados.

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