Todos os dias, uma média de 196 casos de violência física contra crianças e adolescentes de zero a 19 anos de idade foi notificada nas unidades de saúde do Brasil ao longo de 2023. Além disso, cerca de 80% das agressões contra crianças até 14 anos acontecem dentro de suas próprias casas. O alerta é da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que nesta semana discutirá este e outros cenários da infância e adolescência no maior evento científico da especialidade, em Florianópolis (SC). No Acre, foram 412 casos no período, a maoria contra adolescentes de 15 e 19 anos mas 11 ocorrências foram registradas afetando bebês com menos de 1 ano de vida. Apesar de ser uma das menores taxas do País, o Acre tem mais de 1 caso de violência infanto-juvenil ao dia.
Apesar do número expressivo de registros, especialistas acreditam que esses dados representam apenas a ponta do iceberg. “A subnotificação é um grande desafio, impedindo uma compreensão mais precisa da real dimensão do problema, e, especialmente, a interrupção da violência e o tratamento de seus danos, físicos e psíquicos. Como na maioria dos casos a violência é intrafamiliar ou doméstica, permanecem reféns indefesos de seus violadores. Os agressores, homens e mulheres, vão evitar ao máximo levar a criança ou adolescente para atendimento médico, mas, quando o fazem pela gravidade das lesões, criam estórias de “acidentes” para encobrir suas violências. Em áreas remotas ou com poucos recursos, a notificação e o tratamento e a proteção das vítimas ainda é menor. Isso é particularmente evidente na região Norte, onde o número de notificações é significativamente menor, o que pode estar relacionado tanto à dificuldade de acesso aos serviços de saúde quanto à ausência de mecanismos eficazes de denúncia, tratamento e proteção”, observou o presidente da SBP, dr. Clóvis Francisco Constantino.
No Brasil, a notificação de qualquer suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes é compulsória conforme estabelecido pelo Ministério da Saúde e obrigatória pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Todos os casos devem ser reportados ao Conselho Tutelar, mesmo de mera suspeita, e, em situações mais graves ou que envolvem crimes como violência física, psicológica ou sexual, as delegacias de polícia e o Ministério Público também precisam ser notificados.
Segundo o Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), mantido pelo Ministério da Saúde, os casos de violência afetam todas as faixas etárias da população pediátrica. Em 2023, foram registradas mais de 3 mil notificações envolvendo bebês com menos de um ano, enquanto 8.370 casos foram relacionados a crianças de 5 a 9 anos. Os adolescentes de 15 a 19 anos foram as principais vítimas, com 35.851 notificações ao longo do ano.
Distribuição geográfica – De modo geral, os estados da região Sudeste concentram a maioria dos casos de violência física contra crianças e adolescentes, o que é esperado devido à alta densidade populacional e sistemas mais eficientes de diagnóstico e denúncia. No entanto, as regiões Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte também registraram números expressivos, com a violência distribuída por diversas faixas etárias. Adolescentes de 15 a 19 anos representam o maior número de notificações na maioria dos estados, mas impressiona que os espancamentos e outras violações de crianças aconteçam desde os primeiros dias de vida. É preciso interromper estes danos o mais precocemente possível!
O estado de São Paulo lidera em todas as faixas etárias, com 17.278 registros de violência física, o que corresponde a uma média de quase 50 casos por dia no estado mais populoso do país. Minas Gerais surge como o segundo estado com mais notificações, contabilizando 8.598 casos em 2023. Em terceiro lugar, o Rio de Janeiro registrou 7.634 casos.
A região Sul também apresenta números preocupantes. O Paraná, com 7.266 casos, e o Rio Grande do Sul, com 2.331 casos, se destacam. No Paraná, chama a atenção a elevada proporção de casos em menores de 10 anos, representando 88% das notificações. Em Santa Catarina, 71% dos episódios de violência física também envolvem crianças com menos de 10 anos.
Na região Nordeste, a Bahia aparece em destaque, com 3.496 ocorrências. Outros estados com números expressivos incluem o Ceará (com 2.954 casos) e Pernambuco (com 2.935 casos), especialmente entre adolescentes de 15 a 19 anos. No Centro-Oeste, o estado de Goiás se destaca com 2.533 casos, dos quais 56% ocorreram entre adolescentes de 10 a 19 anos. Na região Norte, o estado do Pará se sobressai, com 2.357 notificações, sendo o mais afetado da região.
Somando os registros de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violências físicas, psíquicas ou psicológicas, sexuais e a violência contra si mesmo – auto agressão, foram mais de 1000 casos por dia no Sistema Sus em 2023.
Orientação aos médicos – “A violência contra crianças e adolescentes é uma doença silenciosa que ocorre, na maioria das vezes, dentro de suas próprias casas. Por isso, é fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos e sensíveis aos sinais de violência. Fraturas inexplicáveis ou específicas de traumas intencionais, relatos contraditórios ou lesões incompatíveis com o trauma descritos, ou com o desenvolvimento psicomotor da criança, são indicativos claros de que a criança ou adolescente precisa de maior avaliação, diagnóstico, tratamento e, proteção imediata”, alerta a dra. Luci Pfeiffer, presidente do Departamento Científico de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas na Infância e Adolescência da SBP.
Ela acrescenta que a violência intrafamiliar, a forma preponderante de agressões de todas as espécies, é uma doença crônica, progressiva, que se repete de geração a geração e de efeito desestruturante potencializado pela relação de dependência física e emocional com os agressores, tanto pelo dano direto, como pela destruição dos laços de amor e confiança com o mundo adulto. Como doença, tem os dados para suspeita na anamnese, acompanhados de sinais e sintomas próprios, que exigem tratamento e, a interrupção do ciclo de violência, com as medidas de denúncia e desencadeamento das medidas de proteção e justiça. Acomete todas as classes socioculturais, etnias e credos, em todo mundo. a subnotificação e invisibilidade de muitas situações de abuso e agressão. Para a especialista, embora o diagnóstico da doença violência e o encaminhamento de uma notificação não constitua uma denúncia formal contra os agressores, mas sim que se encontrou evidências de situação de violência, seja ela leve, grave, gravíssima ou de simples suspeita, este é um passo importante no processo de cuidados destinado a pessoas em situação de risco.
Reiteradamente, a SBP tem buscado ampliar a rede de proteção às crianças e adolescentes por meio da atuação dos pediatras. Em 2004 publicou o primeiro manual para diagnóstico da violência pelo pediatra (DC de Segurança à época, publicado pela Nestle e enviado a todos os pediatras do Brasil) . Em 2018, a entidade lançou o “Protocolo de Abordagem da Criança ou Adolescente Vítima de Violência Doméstica”, que orienta os especialistas sobre como diagnosticar e conduzir adequadamente os casos de maus-tratos. Além disso, o “Manual de Atendimento às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência” foi atualizado e disponibilizado gratuitamente, servindo como guia para profissionais de saúde, educação, justiça e outros que atuam diretamente com a população pediátrica.
Desde a primeira publicação do Tratado de Pediatria (2010?) o tema Violência na Infância e Adolescência passou a fazer parte de seus capítulos, com a abordagem desde a epidemiologia e diagnóstico até a orientação ética e legal de como proceder em cada caso em que a suspeita ou o diagnostico da doença Violência é colocado. E, estes conteúdos foram atualizados para a edição 2024 a ser lançada no 41. Congresso da SBP.
Após o 41º Congresso Brasileiro de Pediatria, que será realizado entre 22 e 26 de outubro em Florianópolis (SC), uma nova campanha de sensibilização e orientação diagnóstica da SBP será implementada em todo o País, com parcerias importantíssimas. O objetivo é fortalecer as ações de prevenção e a identificação precoce dos sinais de violência em todos os níveis de serviços de saúde.
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