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“O negacionismo climático ameaça a vida”

Fiocruz —

A jovem mulher, negra, acreana, filha de um seringueiro e de uma dona de casa, militante social e ambientalista falava para um auditório lotado sobre mudanças climáticas e impactos na saúde. A data: abril de 2007. Aplaudida de pé naquele dia, durante aula inaugural da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), ganhou a capa da revista Radis número 58. Era Marina Silva, ministra do Meio Ambiente à época do segundo mandato de Luís Inácio Lula da Silva na Presidência do Brasil.

Dezessete anos depois, ela está à vontade outra vez à frente da pasta, que agora ganhou um complemento e passou a se chamar Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Durante as últimas décadas, Marina viu a crise climática assumir contornos assustadores em um cenário cada vez mais próximo de se tornar irreversível, com o mundo enfrentando ondas de calor intenso, secas extremas e a eclosão de novas pandemias, exatamente como denunciavam os pioneiros da luta ambiental — ela entre eles.

“A gente era os ‘ecochatos’, os ‘ecoterroristas’, que ficavam falando de coisas que pareciam tão distantes”, disse, na entrevista exclusiva à Radis, concedida em dois momentos, em que ela faz um balanço do primeiro ano como ministra, conta sobre “a terra arrasada” que encontrou no Ministério e diz que, apesar disso, foi um ano da reconstrução e da formulação de novas políticas ambientais — ou da atualização daquelas que deram certo.

O desafio agora é o da implementação. “Nós pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento”, defendeu. Para Marina, aliar crescimento econômico e sustentabilidade não é apenas possível, como também necessário.

Disponível, a ministra respondeu a todas as perguntas da equipe e admitiu as contradições de um governo de frente ampla que precisa lidar com temas espinhosos nas questões ambientais e com um Congresso arredio. Mas garantiu que a questão ambiental deixou de ser uma agenda setorial para se tornar uma agenda de governo, liderada pelo próprio presidente da República, e que hoje ocupa lugar tão relevante quanto a área social.

Filha dos seringais
Não foi fácil encontrar uma brecha na rotina da ministra. Marina não para. Da estiagem em Roraima às enchentes no Acre, de um encontro com jovens no Rio de Janeiro onde falou sobre justiça climática em tempos de transformações às reuniões em seu gabinete em Brasília para discutir o mercado de carbono e a transição para a economia verde. Sua fala é um percurso por todos os lugares por onde passa: Vale do Taquari, Brasileia, São Gabriel da Cachoeira, Curralinho. Nesse trajeto, ela nos convoca a todos.

Da pequena comunidade de Breu Velho, onde nasceu no Seringal Bagaço, em Rio Branco, ela guarda muitas histórias e a casinha em miniatura onde morou com a avó. “Para nunca esquecer de onde eu venho”. Aos 66 anos, mãe de quatro filhos, três vezes candidata à Presidência da República, Maria Osmarina da Silva Vaz de Lima — nome de batismo — está cada vez mais aguerrida.

Em 2023, durante uma reunião do G-20, indagou de forma direta: “Se esse grupo aqui tem a consciência do problema, porque tem acesso aos melhores estudos científicos, aos recursos financeiros e tecnológicos, o que está faltando para começar a fazer a diferença?”

Aqui, ela esboça uma resposta. Com a palavra, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

— Foto: Skoll Foundation.

Ministra, há 17 anos, a senhora esteve na capa de Radis e, já naquele momento, alertava para os efeitos do aquecimento global na vida das pessoas, em especial entre os mais vulnerabilizados. O que mudou de lá para cá?

Acho que a gente tem uma mudança paradoxal. A primeira delas é que ampliou a consciência. Há 17 anos, a gente falava dessas questões, mas não tinha a mesma reverberação que hoje tem. A gente não tinha a quantidade de meios de comunicação mostrando o problema, não tinha tantas pesquisas científicas. A outra questão é que também aumentaram os problemas. Ou seja, hoje, nós temos uma percepção muito maior porque a gente tem um agravamento da situação. Eu diria que teve uma ampliação da consciência em função de vários vetores, inclusive o vetor da dor e do sofrimento concreto. As pessoas perdem seus entes queridos, perdem suas casas, seu patrimônio, suas ruas, suas cidades — seja pela seca e pelo calor intenso, seja pelas cheias.

“A política ambiental tem que ser transversal.”

Por outro lado, aumentou também o negacionismo?

Eu diria que, naquele momento [2007], a gente ainda não tinha um segmento organizado politicamente com uma quantidade significativa de gente fazendo uma militância negacionista em relação às mudanças do clima. Agora, a gente tem um contraponto também mais organizado nessa sociedade dividida. Naquela época, a gente era considerado um nicho, uma minoria, um segmento. Sempre repito: a gente era os ‘ecochatos’, os ‘ecoterroristas’, que ficavam falando de coisas que pareciam tão distantes. Ou seja, agora a gente tem os meios de comunicação, a própria sociedade e uma quantidade muito maior de pessoas relacionando essas questões e debatendo os efeitos das mudanças climáticas. Da parte do governo, se 20 anos atrás, a gente era um grupo pequeno, agora a gente tem o próprio presidente da República liderando essa agenda e dizendo que a política ambiental tem que ser transversal. Porque os problemas causados pelos danos ambientais são igualmente transversais em relação à saúde, às questões econômicas e à qualidade de vida das pessoas, até porque os mais afetados são sempre os mais vulnerabilizados.

Ondas de calor intensas, enchentes, eclosão de novas pandemias. Já estamos sentindo na pele, e de maneira irrestrita, as consequências da crise climática. A pergunta é: o que falta para que a pauta ambiental ganhe adesão total?

Sinto que hoje temos uma aderência incomparavelmente maior. Vou medindo pela minha trajetória de vida. Aos 17 anos, quando a gente começou essa luta, lá atrás com Chico Mendes [ambientalista, sindicalista e seringueiro, símbolo da preservação da Amazônia, assassinado em 1988], a gente era o gueto do gueto. Dentro do próprio campo progressista, a gente era uma minoria — inclusive, muito incompreendida. Diziam que, nessa luta ecológica, a gente era um jogo nas mãos do capitalismo americano para tentar frear a luta dos trabalhadores. Ou seja, tínhamos isso dentro do próprio espaço em que a gente gostaria muito de ser, pelo menos, acolhido. Eu diria que houve, sim, um aumento significativo de adesão entre os formadores de opinião e até em determinados setores de alguns nichos econômicos. Mas do ponto de vista do Congresso, por exemplo, infelizmente essa luta continua sendo minoria. Quando vamos para os temas ambientais, que são os temas de ponta do debate hoje no mundo — a disrupção tecnológica, a questão da mudança climática, o desafio de como as democracias continuarão vigorosas e dando respostas aos problemas da humanidade —, temos ali uma minoria de parlamentares identificados e comprometidos com essa agenda.

Que rumos esse debate tem tomado dentro do Congresso?

É sempre no caminho de retrocesso: como vamos flexibilizar licenciamento? Como vamos flexibilizar a questão em relação ao uso de agrotóxicos? Como vamos flexibilizar a demarcação de terra indígena? Como vamos conter a criação de unidades de conservação? É totalmente na contramão do que precisa ser acelerado.

Marina acompanha de perto as enchentes no Acre, em março

Discurso na 53ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima. — Foto: Ascom/Conselho Indígena de Roraima.
Marina acompanha de perto as enchentes no Acre, em março
Ainda no Acre: município de Brasileia enfrentou a maior cheia de sua história. — Foto: Luan Martins.
À esquerda: Marina acompanha de perto as enchentes no Acre, em março. — Foto: Neto Lucena. Ao centro: Discurso na 53ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima. — Foto: Ascom/Conselho Indígena de Roraima. À direita: Ainda no Acre: município de Brasileia enfrentou a maior cheia de sua história. — Foto: Luan Martins.
E como garantir que a pauta ambiental e climática seja prioridade no governo, que em sua base de apoio também reúne setores contrários a essa agenda?

Dentro do governo hoje a mudança é muito grande. Dos 88 programas do PPA [Plano Plurianual], coordenado pela ministra [do Planejamento] Simone Tebet, 50 estão ligados à agenda ambiental e de sustentabilidade. O ministro [da Fazenda] Fernando Haddad está coordenando o Plano de Transformação Ecológica pensando em eixos estratégicos e já trabalhando nos processos de implementação desses eixos. Conseguimos, com a ajuda do Ministério da Fazenda, fazer com que o Fundo Clima, que era da ordem de 400 milhões de reais, passasse agora com os títulos verdes para cerca de 10 bilhões de reais para projetos de desenvolvimento sustentável na área de clima. O próprio PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] coloca a questão da sustentabilidade para que projetos muito complexos e com muita pressão política sejam logo reencaminhados para estudos. O ministro [da Casa Civil] Rui Costa encaminhou para estudos a Ferrogrão [Projeto de ferrovia para ligar o Pará ao Mato Grosso], a exploração de petróleo na margem equatorial e o projeto da [Usina Nuclear] Angra 3. Anteriormente, essas coisas iam direto para o PAC. Agora, está no PAC, mas não vai andar enquanto não vierem os estudos de viabilidade.

“Tem que cair a ficha de que aquele Brasil, com aquelas regularidades naturais que nós tínhamos, não existe mais. Então, vamos ter que acelerar o processo.”

O que ainda falta?

Essa pergunta que vocês fazem é a mesma pergunta que fiz numa reunião do G-20: “Se esse grupo aqui tem a consciência do problema, porque tem acesso aos melhores estudos científicos, aos recursos financeiros e tecnológicos, o que está faltando para começar a fazer as coisas, já que 80% dos recursos financeiros do mundo, digamos assim, estão nas mãos dos 20 países mais ricos, e já que mais de 70% das emissões de CO2 estão sendo feitas por esses países mais ricos? O que está faltando para fazer a diferença?” Acho que tem uma complexidade objetiva, material. Como se perdeu muito tempo desde a Rio 92 [Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, popularmente conhecida como ECO-92] sem fazer o dever de casa, a gente chega ao momento que a mudança climática e os eventos extremos estão instalados, mas, por não ter sido preventivo fazendo o dever de casa progressivamente, você olha e diz: “Mas o que dá para fazer agora?” Agora, não tem mais uma resposta. Não se consegue mudar a matriz energética da noite para o dia. Ainda bem que o Brasil, ao longo desses anos, conseguiu ter uma matriz energética 43% limpa e uma matriz elétrica quase 90% limpa. Mas, mesmo assim, ainda tem espaço para mudança. E somos um país vulnerável porque dependemos de hidroeletricidade. Tem que cair a ficha de que aquele Brasil, com aquelas regularidades naturais que nós tínhamos, não existe mais. Vamos ter que acelerar o processo.

Como isso vai ser possível?

Eu acho que essa aceleração depende de vários esforços: os esforços globais e os esforços no âmbito dos estados nacionais. Nós estamos trabalhando nossas NTCs [Notas Técnicas Conjuntas] para que elas sejam ambiciosas; estamos trabalhando o Plano Clima [principal orientador para o Brasil manter o ritmo de redução no desmatamento e a transição para a economia de baixo carbono rumo à neutralidade climática]; nós temos cerca de nove ações na área de mitigação e 15 ações na área adaptação. A questão da adaptação é urgente, urgentíssima e, infelizmente, essa é uma agenda que foi sendo negligenciada não só no Brasil, mas no mundo. Não sei se é negligenciada, mas a gente falava muito de mitigação, mitigação, mitigação. Agora, a gente está vendo que há necessidade de adaptação, inclusive, do ponto de vista de pensar que novas doenças estão surgindo ou que estão se alastrando para regiões em que elas não existiam. Eu digo que a gente vai ter que se desadaptar. Ao mesmo tempo que a gente vai ter que se adaptar a uma nova realidade, vamos ter que nos desadaptar da velha realidade que tínhamos.
Em que sentido, ministra?

Eu fui no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, e falei assim: “Olha, infelizmente esse lugar aqui é um lugar vulnerável, esses eventos vão acontecer de novo”. E aí, uma pessoa dizia pra mim, resistindo: “Não, mas isso aqui aconteceu há 93 anos”. Talvez querendo dizer: “Vocês, ambientalistas, se aproveitam do problema”. Mas, infelizmente, as enchentes aconteceram três vezes só no ano de 2023. É uma pedagogia dura, difícil de lidar. A pessoa pensa: “Ah, mas a minha rua não vai mais existir? A minha casa não vai existir? A minha empresa não tem mais como ser aqui? A minha identidade com esse bairro, às vezes até com esse município, como fica?” Eu vi agora em Brasileia [cidade do Acre que registrou a maior cheia de sua história em fevereiro]. O município é terra arrasada. Já foram feitas várias reconstruções lá. Não tem como insistir para mudar uma realidade que, no ano que vem, vai acontecer de novo.

“Pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção ambiental estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento.”

Nesse cenário, há um ano e meio, a senhora assumiu mais uma vez o comando do Ministério do Meio Ambiente — hoje também Ministério de Mudança do Clima. Está sendo como esperava? Que balanço é possível fazer?

Esse primeiro ano foi duplamente desafiador. Primeiro, foi um ano de reconstrução de políticas públicas, não só na área ambiental, mas em vários setores, principalmente aqueles completamente abandonados e até mesmo perseguidos pelo governo anterior — por exemplo, a área dos direitos humanos, das políticas para mulheres, a área social. A área ambiental, nem se fala. E esse processo não se encerra porque se passou um ano. Tem estruturas que continuarão sendo fortalecidas porque o esgarçamento foi muito grande. Mas acho que a gente conseguiu sair de um momento basal, ali na UTI, para poder ter alta e começar a trabalhar. Estamos trabalhando. Só que nós decidimos que não íamos esperar pelo orçamento ideal ou a situação ideal. A gente foi trabalhando da forma como foi possível desde que chegou aqui. E já no primeiro ano, conseguimos uma redução de desmatamento de 50%. Isso é muita coisa diante da terra arrasada que a gente encontrou. Nós pensamos a questão ambiental não só do ponto de vista da proteção ambiental estrito senso, mas como mudança de modelo de desenvolvimento, pegando os eixos estratégicos de um plano de transformação ecológica: a questão das finanças sustentáveis, do adensamento tecnológico, da infraestrutura resiliente, da bioeconomia, da segurança energética, e a agenda da economia circular. Pensamos todos esses eixos sinalizando que os desafios de um novo ciclo de prosperidade que o país precisa não é mais na velha lógica da visão puramente desenvolvimentista que perpassou toda a história do Brasil nos últimos séculos. Esse desafio também entra numa outra fase: não mais da formulação, agora é da implementação.

“Os desafios de um novo ciclo de prosperidade que o país precisa não é mais na velha lógica da visão puramente desenvolvimentista que perpassou toda a história do Brasil nos últimos séculos.”

E quais são os maiores desafios a partir daqui?

Nós temos uma contradição: ao mesmo tempo que os investimentos terão de ser de longo prazo e com mais recurso, a gente tem mecanismos fiscais que nos impedem em relação a várias políticas que o Estado gostaria de patrocinar e de estar ali na ação de indução dessas políticas. Então, o primeiro desafio foi da reconstrução e da formulação de novas políticas ou da atualização de políticas que deram certo e que precisavam ser atualizadas, como foi o caso do PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], a retomada de políticas que tinham sido paradas, como foi o caso do Fundo-Amazônico e outras. E agora nós estamos neste ano com o desafio de implementar tudo aquilo que a gente planejou. Na Amazônia, depois desses primeiros meses, tivemos uma redução de 29,2% no desmatamento em cima dos 50% que já haviam caído. Por outro lado, tem um desafio enorme em relação ao Cerrado. O bom é que conseguimos fazer o PPCerrado [conjunto de medidas intersetoriais para tentar conter a destruição de parte da vegetação do Cerrado] e estamos em fase de implementação. Tivemos ali uma pequeníssima queda de 4% em relação a 2023, mas ainda não dá para dizer que é uma tendência. É um esforço hercúleo.

Como lidar com essas contradições?

Às vezes, as pessoas falam: “Ah, mas tem contradições”. Existem contradições! Nós somos uma frente ampla, não tem como ser diferente. A contradição faz parte da dinâmica política, social, cultural, acadêmica, né? Dentro do mesmo departamento, você vai ter abordagens metodológicas, que muitas vezes podem parecer contraditórias. É da natureza das dinâmicas humanas. Mas o importante é que o presidente Lula, ele mesmo, está liderando a agenda. A ministra do Meio Ambiente não teria força para dizer: “Não, o Ferrogrão não entra agora no PAC, vai para estudo!” A gente apresenta as razões, os argumentos técnicos, mas a decisão, o poder disso é do presidente da República. E mesmo que haja as contradições, elas têm que ser dirimidas politicamente e tecnicamente. Nem tudo é dirimido só politicamente. A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] não pode dizer que aquele agrotóxico não faz mal para saúde, em função de uma visão política. Assim como o Ibama tem a liberdade de dizer que determinado empreendimento não tem viabilidade ambiental e que é preciso buscar alternativas, que às vezes até podem ter um custo maior. Mas, paciência, é isso que precisa ser feito.

“Se não mudar agora, não adianta achar que vai haver algum processo de adaptação, porque os processos de adaptação natural levam bilhões de anos.”

Por falar em contradições, naquela mesma palestra na Ensp, há 17 anos, a senhora declarou que fazia parte de “um grupo de ambientalistas insustentáveis”. É possível assegurar crescimento econômico e sustentabilidade?

Eu fiz uma brincadeira [risos]. Mas é possível, sim. Aliás, ou é possível ou não haverá mais crescimento econômico e prosperidade. Há um bom tempo, tenho insistido: não se trata mais de compatibilizar economia com ecologia, desenvolvimento com proteção ambiental. Mas de como integrar tudo isso numa mesma equação. E essa integração parte de um ponto que tem a ver com ciência. Gosto muito de uma frase do autor da ideia do decrescimento [movimento que propõe a redução planejada do uso de energia e recursos materiais nos países de alta renda para frear mudanças climáticas]. Ele diz que a química e a física não têm até agora como explicar inteiramente a vida. Mas uma coisa é certa: tudo aquilo que vai contra as leis da natureza não tem base científica. Eu acho essa frase incrível. Porque às vezes as pessoas querem que a ciência faça mágica e a ciência não faz mágica. No início da era moderna, havia quase uma panaceia: “Esculhambem, que a ciência garante!”. E os cientistas se resvalaram disso, sobretudo no caso da mudança climática, quando fizeram uma inflexão incrível e disseram: “Olha, se não mudar agora, não vai ter tecnologia que dê conta! Não existe uma mágica tecnológica”. Quer dizer, se não mudar agora, não adianta achar que vai haver algum processo de adaptação, porque os processos de adaptação natural levam bilhões de anos. Então, não vai ter tempo de acontecer nenhuma adaptação. É preciso lidar com o princípio da precaução. As pessoas podem até dizer: “Ah, mas não é nem certo que vai acontecer isso ou aquilo. A gente vai fazer um monte de investimentos e depois não vai ocorrer evento extremo”. Aí a ciência vem e diz: “Paciência. Se não tiver, melhor. No mínimo, a gente conseguiu ter práticas econômicas, sociais, de infraestrutura, arquitetônica, muito melhores. Mas não podemos pagar para ver”. Infelizmente, uma parte da humanidade pagou pra ver e agora estamos vendo o que está acontecendo. Então, respondendo a sua pergunta, é possível e esse é o grande desafio que a humanidade tem diante de si em várias áreas.

“O negacionismo da extrema direita global e que se expressa no Brasil é uma ameaça à vida, à ciência e à civilização”.

A desinformação seria um obstáculo nesse sentido?

Existem duas frentes que não têm como dar conta do recado sozinho. Uma é saúde e a outra, o clima. Quando veio a pandemia, o mundo todo teve que interagir mesmo esquecendo — ou deixando ali numa gaveta — os embates geopolíticos, e todo mundo precisou trabalhar numa direção de salvar a vida. Na questão climática é a mesma coisa. Qual é o grande risco? É o negacionismo da extrema direita global e que se expressa no Brasil e nos Estados Unidos como uma ameaça — uma ameaça à vida, uma ameaça à ciência, uma ameaça à civilização.

A pedido dos assessores, a entrevista precisou ser interrompida. A ministra estava atrasada para um almoço com o presidente Lula, a primeira-dama, Janja da Silva, ministras e servidoras, como parte das comemorações pelo Dia Internacional da Mulher (8 de março). Ela se despediu da equipe com o compromisso de retomar a conversa dentro de alguns dias. Em menos de uma semana, Radis encontrou-se novamente com Marina Silva por meio de uma chamada de vídeo. Nesta segunda parte da entrevista, ela comenta sobre a importância da participação popular para a agenda socioambiental, emociona-se ao falar do Sistema Único de Saúde e relembra sua trajetória de vida e o reencontro político com Lula.

Há uma temática muito cara na sua trajetória, ministra: a participação social. Que papel exercem, por exemplo, as populações tradicionais, como indígenas e quilombolas, no enfrentamento das questões climáticas?

Primeiro, acho que o tema ligado ao meio ambiente, ao equilíbrio do planeta, à proteção de florestas, à biodiversidade, é praticamente impossível de ser pensado apenas de cima para baixo. Pelo menos dentro das culturas democráticas, não consigo vislumbrar como possa acontecer. O Brasil talvez seja a melhor demonstração disso. Porque, quando isso ainda não era política pública ou ainda não era um tema tão forte no meio acadêmico, foram os movimentos sociais que iniciaram essa luta de resistência contra a destruição das florestas, ali na figura do Chico Mendes, e os povos indígenas — que milenarmente fazem isso por estilo de vida, por identidade cultural e pela própria cosmovisão que têm. Num campo mais geral, eu não consigo imaginar as boas políticas que deram certo, não fosse a diretriz de controle e participação social. O próprio Plano de Combate ao Desmatamento é fruto da ação, agora, de 19 ministérios e, no passado, quando começou, de 13 ministérios. Ali, as políticas públicas eram desenhadas tanto a partir dos técnicos do Ministério quanto nos seminários técnico-científicos, em que se tinha desde o olhar do setor produtivo até o olhar da academia e das organizações da sociedade civil. E agora, quando atualizamos o PPCDAm foi com a mesma lógica. A primeira versão do PPCerrado, inclusive, foi colocada para consulta pública. Isso nos dá muitos retornos. E ao mesmo tempo, quando você pensa nos novos desafios que estão postos, que envolvem várias formas de criminalidade, só a ação do poder público não dá conta. Se não há a presença das comunidades e uma dinâmica local que dê sustentação, depois que o Ibama vai embora, a criminalidade volta.

“Não consigo ver a gente fazer o enfrentamento às mudanças climáticas sem o Sistema Único de Saúde.”

Por último, a senhora já se declarou beneficiária dos avanços do Sistema Único de Saúde. Naquela mesma palestra há 17 anos, disse: “Premiada com cinco malárias e três hepatites, fui muito bem tratada”. Qual a importância do SUS para a longevidade do planeta?

Acho que o SUS funciona como aquele que vai combater as doenças, inclusive aquelas que advêm das mudanças climáticas, da perda de biodiversidade e da alteração dos ecossistemas e dos recursos hídricos. Muitas doenças estão migrando para lugares que a gente nem imaginava, e provavelmente outras poderão aparecer em lugares onde não teriam como se firmar. Então tem esse papel de reagir aos efeitos. Mas tem também o papel de prevenir e de promover. Eu e a ministra Nísia Trindade marcamos, inclusive, uma reunião para tratar da questão da saúde e mudança climática, e sobre a repercussão dos agrotóxicos que incidem sobre o meio ambiente e a saúde do planeta. Não consigo ver a gente fazer esse enfrentamento sem o Sistema Único de Saúde. Quando o Ministério da Saúde diz que, durante o período das queimadas, as doenças respiratórias aumentam e que cresce também a mortalidade infantil e de pessoas idosas, isso é um alerta. Não é só uma questão de cuidar de quem ficou com a doença respiratória, é o trabalho também de mostrar que aquilo é um vetor de adoecimento causado pelo homem. Durante a pandemia de covid-19, por exemplo, o SUS nos mostrou a impotência do setor privado diante de grandes consequências dos desastres ambientais. Se não tivéssemos o SUS, o que teria acontecido? Onde se deu a maior frente da batalha? Foi dentro do sistema público de saúde. Eu fico até emocionada. Porque teria sido uma carnificina. Além disso, há outro caminho quando olhamos para o desenvolvimento de alternativas com as novas tecnologias na saúde. Muitas delas são adquiridas e se tornam acessíveis por meio do SUS. Eu mesma pude ser tratada pelo SUS em várias situações. Logo que saí do seringal, fui tratada como indigente — era assim que chamavam as pessoas que não tinham INPS [Instituto Nacional de Previdência Social]. Depois, quando o meu primeiro marido passou no concurso da Embratel, passei a ter um plano de saúde. Mas tive a minha primeira filha na condição de indigente. Fui beneficiária da saúde pública e tenho muito respeito pela saúde pública. Eu sei que ter uma saúde que funcione tão bem — de sorte que ter um plano de saúde privado seja uma questão de escolha e não de necessidade — é fundamental.

O tempo da vida e o da política
Aminiatura da casinha de seringueiro onde Marina Silva viveu na infância com a avó está sobre a mesa em seu gabinete, dividindo a cena com uma bandeira do Brasil. “Não posso esquecer de onde eu vim”, diz a ministra, virando levemente o corpo para mostrar o objeto aos interlocutores, do lado de cá da tela do computador.

Como essa mulher acreana, evangélica, com uma trajetória marcada por encontros como os que teve com Chico Mendes e com as Comunidades Eclesiais de Base, hoje premiada como uma das 10 pessoas mais influentes no mundo para a ciência, pela revista Nature, vive o paradoxo de lidar com o tempo das grandes causas humanitárias, das paixões e da luta social, e o tempo da política institucional, dos gabinetes e dos acordos palacianos, naquilo que parece uma contradição em termos?

Não separando as duas coisas, ela ensina. “Oriento a minha ação institucional por aquilo que tem a ver com esses valores e com essa experiência de vida. Isso retroalimenta ainda mais os resultados e os processos de tomada de decisão”.

Quando conversou com Radis pela segunda vez num intervalo de duas semanas, ela havia retornado de uma viagem ao Pará. Lá, no município de Curralinho, ao lado do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, lançou em meados de março o Sanear Amazônia, um programa de saneamento básico idealizado com recursos do Fundo Amazônia, para promover a implantação de tecnologias sociais de acesso à água e inclusão produtiva para as famílias rurais de baixa renda e comunidades tradicionais.

“Poder ir a essa região, numa situação de tanta vulnerabilidade, depois de aquelas comunidades serem abandonadas por quatro anos, para levar um programa que, entre outras coisas, lhes garanta água potável — no meio de tanta água, eles não tinham água para beber — e ainda assegurar que façam parte das fossas, já que elas não tinham onde colocar sua descarga orgânica, é maravilhoso”, diz. “Tem a ver com usar todas as possibilidades de uma experiência no Executivo, onde você pode realizar coisas e direcionar para aquilo que faz a diferença para o conjunto da sociedade”. Para Marina, isso acontece no exato encontro entre técnica e ética.

Esse lugar de compromisso, que Marina acessa ao virar para trás e se deparar com a miniatura da casinha de seringueiro, ela sabe que é possível encontrar também dentro de si. “Tem muita gente que tem compromisso com os povos indígenas e não precisou viver a vida que eu vivi. Muita gente que tem compromisso com a saúde pública e não precisa, graças a Deus, ter tido cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose. O bom do ser humano é que ele tem essa maravilha”, comenta, sem esquecer que nem todos são capazes desse exercício. “É. Também tem gente que quer se apartar da sua história.” (ACP)

Edmilson Ferreira
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Edmilson Ferreira

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