Uma falácia reproduzida por “especialistas” na imprensa e por leigos nas redes sociais afirma que toda evolução do conhecimento humano é resultado de um negacionismo, e que a ciência só evolui por conta das pessoas que se recusam a acreditar na verdade estabelecida. À primeira vista, esse raciocínio pode parecer correto: quando defendeu a teoria copernicana, ou heliocêntrica, no século XVII, Galileu Galilei foi contra o que a maioria acreditava, por exemplo. Por meio de observações, experimentações e cálculos, ele corroborou a ideia de que o Sol é o centro do universo – e não a Terra, como se defendia até então.
Mas ir contra o senso comum não tem nada a ver com negar um fato atestado e comprovado pela ciência. Questionar algo e negar uma verdade são ações bem distintas – e só a primeira delas contribui para o avanço científico.
A validação não é uma questão de gosto ou de opinião, mas sim de matemática. Em última instância, é ela que descreve todos os eventos da natureza. Na realização de um estudo científico, há sempre uma etapa de comprovação que envolve estatística e cálculos para mostrar, por exemplo, se uma vacina é eficaz ou não. Esse resultado é comparado com outro cenário, também analisado a partir de dados empíricos, e daí se obtêm a conclusão final. Em resumo: os cientistas usam métodos estatísticos e matemática para descrever a natureza de um fenômeno, atestando se a descoberta feita por eles tem significado ou não, se é uma verdade ou não é.
O pesquisador e diretor do Laboratório Multipropósito do Instituto Butantan, Renato Mancini Astray, conta que o negacionismo não faz o conhecimento humano evoluir, como indica o sofisma que circula na internet. “O que faz a ciência avançar é a ignorância, é a pergunta, não é negar. Negacionismo é você ir contra algo que tem evidência. Você está negando algo que foi muitas vezes comprovado cientificamente”, aponta ele.
Por outro lado, a verdade científica não dura para sempre. Ela pode, sim, ser derrubada, mas somente por outra verdade científica, comprovada conforme padronizações internacionais. Um exemplo é a Teoria da Relatividade Geral, elaborada pelo físico alemão ganhador do Prêmio Nobel Albert Einstein (1879-1955). Ela mudou os pressupostos da física no início do século XX abrindo um novo campo de estudos, que alguns anos depois seria reavaliado novamente com o advento da física quântica.
Nesse caso, o que aconteceu foi que os cientistas entenderam que a física clássica só conseguia explicar os fenômenos da natureza até certo ponto – dali em diante, era preciso utilizar de novos cálculos, práticas e pressupostos. “O questionamento sempre levou à evolução tecnológica. Tudo acontece quando existem pessoas com opiniões diferentes”, assinala a médica infectologista Fabíola Rocha Setúbal. Isso não é negacionismo: a ciência, à medida em que avança, vai aumentando o número de informações que temos sobre o mundo – às vezes invalidando o que se entendia até então; outras vezes, complementando e ampliando uma hipótese já estabelecida. Mas sempre com comprovação e um lastro na verdade.
Afinal, o que é negacionismo?
Segundo a definição da Academia Brasileira de Letras, negacionismo é uma “atitude tendenciosa que consiste na recusa a aceitar a existência, a validade ou a verdade de algo, como eventos históricos ou fatos científicos, apesar das evidências ou argumentos que o comprovam”. Novamente: o negacionismo não vai contra o senso comum, ele vai contra a verdade e os fatos provados pela ciência.
Um artigo publicado na Revista Brasileira de História aponta que o termo se popularizou no final da década de 1980, depois que o historiador francês Henry Rousso passou a usá-lo para se referir a grupos e indivíduos que negavam a existência das câmaras de gás e o extermínio em massa de judeus pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Atualmente, Rousso entende negacionismo como “uma modalidade discursiva, um modo de representação do passado e de percepção do presente”.
A atitude de negar os pressupostos da ciência, porém, é bem mais antiga que isso. Um artigo da revista Studies in History and Philosophy of Science, do Instituto Real de Tecnologia da Suécia, enumera três formas de negacionismo científico que tiveram larga influência ao longo do tempo: o da Teoria da Relatividade Geral, que teve seu auge entre 1920 e 1930, mas ainda atrai defensores; o da teoria da evolução, que é antiga por reunir adeptos do criacionismo, mas teve um avanço nos anos 1960 a partir do desenvolvimento de argumentos pseudocientíficos; e o climático, também chamado ceticismo climático, que começou nos anos 1980. Outros negacionismos estão ligados à AIDS, à vacinação e às doenças relacionadas ao tabagismo.
Foto: Marília Ruberti/Comunicação Butantan
Negacionismo e Covid-19
Nos últimos anos, o negacionismo começou a atrair mais a atenção do público geral principalmente devido ao ceticismo climático – que reúne pessoas que negam o aquecimento global e o papel dos seres humanos no aumento da temperatura da Terra. Com a pandemia de Covid-19, no entanto, a negação da ciência tomou maior corpo e se propagou de forma jamais vista.
Pesquisadores da Universidade de Jena, na Alemanha, investigaram o negacionismo pandêmico após a primeira onda de Covid-19, em maio de 2020. Eles compararam os padrões de discordância sobre origem, disseminação e capacidade de infecção do vírus SARS-CoV-2 e o risco pessoal causado pela doença entre leigos e especialistas. Dois grupos do público-geral se destacaram: os desdenhosos (8%), caracterizados por uma avaliação de baixo risco da doença, baixo cumprimento das medidas de restrição e desconfiança nos políticos; e os duvidosos (19%), que tinham como características baixa reflexão cognitiva, alta incerteza para distinguir afirmações verdadeiras de falsas e alto consumo de mídia social. Os cientistas concluíram que o negacionismo na pandemia não podia ser vinculado a um único padrão psicológico, mas era definido por duas atitudes: muita confiança nas teorias de conspiração sobre o novo coronavírus, e pouca confiança na complexidade do conhecimento sobre a doença.
Uma pesquisa feita na Grécia com 544 pessoas, entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, investigou os fatores que influenciam ou promovem a desconfiança e as atitudes negativas em relação ao SARS-CoV-2. O estudo mostrou que as mulheres demonstraram uma atitude mais positiva na prevenção e na conduta da pandemia do que os homens, e concluiu que os mais jovens (18 a 30 anos) negavam com mais frequência a validade da informação científica e divulgada pela imprensa do que aqueles com mais de 30 anos. Além disso, habitantes de cidades confiavam mais nos anúncios científicos do que moradores de comunidades menores.
A pesquisa Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia (INCT-CPCT), entrevistou 2.069 pessoas maiores de 16 anos entre agosto e outubro de 2022. O estudo mostrou que 27% das pessoas que negam a existência das mudanças climáticas também se recusam a vacinar seus filhos – uma proporção muito maior do que a média geral (8%). Para os pesquisadores, esse resultado é “um indício preocupante de que as campanhas de desinformação podem ter criado terreno fértil para o surgimento de um grupo de pessoas adeptas de teorias da conspiração em geral”. Eles lembram que o fenômeno já foi observado nos Estados Unidos, mas que no Brasil essa correlação entre diferentes negacionismos ainda não havia sido observada.
Outra conclusão do estudo foi que, durante a pandemia, a desinformação ajudou a construir a polarização entre os brasileiros que acreditam na ciência e a minoria que demonstra desconfiança. Quando perguntados se a confiança na ciência aumentou na pandemia, 10,1% dos entrevistados disseram que o indicador diminuiu. Além disso, 3,5% das pessoas questionadas disseram que a ciência não traz nenhum benefício para a humanidade, e 30,6% acreditam que ela traz alguns benefícios. Quanto aos riscos, 12,5% dos entrevistados veem muitos riscos nessa atividade humana, e 27,5% enxergam alguns riscos.
O custo do negacionismo
Negar a verdade não é um posicionamento pessoal: é uma questão de saúde pública e um desafio da sociedade. Uma das consequências desse problema é o desperdício de recursos financeiros. Quando uma parcela das pessoas nega uma verdade já comprovada pela ciência e se recusa, por exemplo, a vacinar seus filhos, os pesquisadores são obrigados a dedicar mais esforços para derrubar os mitos por trás da crença equivocada. O resultado é que, devido a um negacionismo, é necessário criar mais evidências científicas sobre algo já comprovado – gastando mais dinheiro, tempo e recursos.
“A sociedade, quando está sensibilizada por uma informação falsa, requer mais evidências, e a comunidade científica responde fazendo mais experimentação”, explica Renato Astray. Tudo para dizer que sim, aqueles dados iniciais estavam corretos, e essa mesma verdade pode ser vista em outros casos, outros públicos, com experimentos diferentes.
Há também o custo mental e as consequências psicológicas do negacionismo para a população como um todo. É saudável duvidar de uma opinião ouvida ou informação lida e ir atrás de fontes confiáveis e reconhecidas para entender o que é verdade e o que não é. Tipicamente, no entanto, os negacionistas não têm o hábito de se abrir para o novo e aceitar visões distintas daquelas que já possuem. “Essas pessoas têm uma tendência de não buscar outras informações diferentes daquelas que acreditam e criam uma bolha. Elas focam nisso e gastam muita energia”, resume Fabíola Rocha Setúbal.
A infectologista lembra da origem do movimento antivacina, que nasceu de um estudo mal-intencionado que não seguia critérios científicos e se utilizava de dados falsos para relacionar a vacina tríplice viral ao autismo. O objetivo era desacreditar o imunizante em uso para beneficiar outro produto, ainda em desenvolvimento. Até hoje, essa falsa pesquisa é o principal argumento sobre o qual se baseia a hesitação e o negacionismo vacinal.
“Temos uma potencialização, um aumento de coisas pequenas. As pessoas se apegam a pequenos estudos, pequenos resultados e vão transformando isso em uma grande realidade”, afirma Fabíola. “Nas pesquisas robustas, de instituições de confiança, feitas por cientistas renomados, os resultados são bem diferentes.”
Reportagem: Caroline Mazzonetto
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan e Shutterstock
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