O SMDK (Sistema de Monitoramento de Desmatamento Kanindé), plataforma de monitoramento territorial remoto desenhada exclusivamente para a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização que luta em Rondônia há 30 anos pelos direitos de povos indígenas, completa seis meses de operação. “Trata-se de um sistema que utiliza diversas tecnologias e imagens disponíveis em satélites. O material é reunido e processado com inteligência artificial, como algoritmos especiais e aprendizado de máquina, seguido de validação por técnicos”, explica Felipe Spina Avino, líder do trabalho de tecnologias para conservação do WWF-Brasil. “Atuamos em parceria com a Kanindé e, a partir das informações coletadas, fazemos análises em conjunto para diagnosticar desmatamentos e invasões.”
Os resultados têm sido satisfatórios porque a plataforma permite obter informações praticamente em tempo real, dando subsídios para ações mais efetivas no território. “Já editamos três relatórios, que foram encaminhados às autoridades e resultaram em apreensões e prisões. Os dados de satélite geram informações macro. Em seguida, utilizando drones e o software Smart para captação de dados com telefones celulares, as equipes de campo mandam informações para a central pelos sistemas de comunicação disponíveis e obtêm uma resposta rápida”, acrescenta Spina. Um dos objetivos do projeto, portanto, que é fundamentar denúncias para que o poder público possa agir, está sendo cumprido.
A parceria com a Kanindé possibilitou treinar e equipar com drones, celulares, câmeras digitais e outras ferramentas 25 monitores indígenas de quatro povos diferentes de Rondônia, melhorando a capacidade deles de defender seus territórios. A Kanindé também já conta com advogados preparados para acompanhar o andamento das denúncias elaboradas, que podem ser acionados a qualquer momento para intervir em situações que representam ameaças às comunidades e seus territórios.
“A implementação do SMDK transformou completamente a relação das comunidades indígenas com os órgãos públicos. Os Uru-Eu-Wau-Wau, por exemplo, sempre monitoraram seu território. Porém, muitas vezes, quando formalizavam uma denúncia, não eram levados a sério, sob a justificativa de que as denúncias eram vagas ou até mesmo falsas”, afirma Israel Vale, da Kanindé.
“Desde a primeira vez em que foram a campo com essas tecnologias, já descobriram um desmatamento na Terra Indígena que não poderia ser localizado sem o uso do drone. E, quando o SMDK ficou pronto, esse tipo de denúncia ganhou robustez. Eles formalizam as denúncias na Funai já com as coordenadas geográficas registradas nas imagens captadas em foto e vídeo. Hoje, são tratados de outra forma e, quando fazem uma denúncia, são levados a sério. A ação dos órgãos públicos ficou muito mais rápida e efetiva”, salienta.
“O sistema SMDK, que abrange 22 terras indígenas de Rondônia, mais uma zona de amortecimento de 10 km ao redor de cada território, totalizando 6,4 milhões de hectares, beneficia mais de 5 mil habitantes de diversos povos e agrega informações de diferentes fontes. Tem potencial para a geração diária de alertas de desmatamento e degradação”, destaca Raul do Valle, especialista em Políticas Públicas do WWF-Brasil. “Tanto que essas tecnologias e técnicas de monitoramento implantadas lá têm sido usadas para frear uma frente de invasão de grileiros que estava bastante ativa nos últimos tempos. Uma base de fiscalização da Funai, no interior da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, inclusive, foi reativada”.
As ações de proteção dos territórios lideradas pelos próprios indígenas são fundamentais para frear o desmatamento: sabe-se que apenas 1,6% da perda de florestas e vegetação nativa no Brasil ocorreu em TIs nos últimos 35 anos. Assim, as crescentes invasões desses territórios também foram acompanhadas por uma explosão da devastação. Só nos primeiros dez meses de 2022 foram destruídos 9,5mil km2 de florestas na Amazônia – o maior valor da série histórica do Sistema Deter, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), iniciada em 2015.
Durante o governo Bolsonaro, o desmatamento bateu sucessivos recordes, rompendo a marca dos 10 mil km2 já em 2019, aumentado para 11 mil km2 em 2020 e 13 mil km2 em 2021 – uma área total desmatada comparável a da Bélgica – e a tendência é que a devastação continue nesse patamar no fechamento de 2022. A média de desmatamento nesses quatro anos foi quase o dobro da verificada nos dez anos anteriores, de 6,5 mil km2. Em Rondônia, a média de desmatamento entre 2019 e 2022 foi de 1,23 mil km2, um aumento de 43% em comparação aos três anos anteriores.
As queimadas também explodiram no bioma. Foram 89 mil focos em 2019, 103 mil em 2020, 75 mil em 2021 e mais de 112 mil só nos primeiros 11 meses de 2022. Logo após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022, as queimadas dispararam de forma descontrolada. O pior caso foi o de Rondônia, com 1.526 focos só nos dez primeiros dias de novembro – um valor dez vezes maior do que a média registrada entre 2012 e 2021.
Protagonismo indígena
Esse trabalho de monitoramento só tem sido possível com o protagonismo dos próprios indígenas e o fortalecimento de ações em rede na região amazônica. “Eu vivo na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, e aprendi a pilotar drones em um curso que aconteceu em 2019”, conta Awapy Uru-Eu-Wau-Wau, de 30 anos. “Agora, o WWF-Brasil me convidou para ser instrutor no Pará. Valeu muito a pena, foi uma experiência incrível e eu fiquei muito feliz. Os parentes aprenderam muito rápido a dominar o equipamento.”
Awapy se refere a um treinamento realizado em outubro, em Belterra, na região do Tapajós, que contou com a participação de indígenas de diversos territórios do Pará. De acordo com ele, embora as realidades de Rondônia e do Pará sejam diferentes, há muitas semelhanças na luta em defesa dos territórios. “Em Rondônia, temos muito desmatamento e muito gado. E, conversando com os parentes, soube que naquela região do Tapajós o principal problema é o garimpo. A tecnologia é muito útil para todos os que lutam contra invasores”, diz.
Além de ensiná-los a operar drones, Awapy relata que transmitiu aos indígenas que participaram dos quatro dias de treinamento em Belterra detalhes de como devem se preparar para missões de monitoramento. “Eles não só aprenderam rápido e já estão pilotando, como logo perceberam a importância de saber usar essa ferramenta”, lembra.
Um dos benefícios do uso do equipamento é aumentar a segurança, evitando confrontos. “Antes, sem o drone, a gente dava de cara com os invasores nas atividades de monitoramento da Terra Indígena. E, muitas vezes, eles estavam armados. Agora, enviamos o drone para uma área a dois quilômetros, por exemplo, e vemos os acampamentos dos invasores, quantos eles são e se estão armados… Localizamos com precisão, registramos e fazemos denúncias com imagens e georreferenciamento”, relata Awapy.
De acordo com Vale, da Kanindé, que esteve no treinamento no Pará, a presença de Awapy como instrutor foi fundamental para que o conhecimento fosse repassado de forma mais eficaz para os participantes – a maior parte composta por indígenas Munduruku, mas também de outros povos, como Xikrin e Tembé. Ele frisa que Awapy não fala a língua dos Munduruku e se comunicou em português, mas isso não atrapalhou o aprendizado.
“Não teríamos tido um resultado tão bom se o instrutor não fosse indígena. Quando os indígenas do Tapajós ouviam do Awapy as instruções sobre pilotagem, ou a descrição de como é feito o trabalho na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, se identificavam. Ao verem um parente dominando aquela tecnologia, eles imediatamente imaginavam que também poderiam e se apropriavam do conhecimento com muita naturalidade”, ressalta Vale.
Em Rondônia, onde o projeto de proteção territorial está consolidado, a parceria do WWF-Brasil é com a Kanindé. Já na bacia do Tapajós, as principais parceiras das ações, que estão em estágio inicial, são a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Fepipa (Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará). No Acre, onde os trabalhos têm avançado com rapidez nos últimos meses, a aliança é com a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), que há mais de 40 anos atua na defesa dos direitos das populações indígenas.
Expansão do projeto
Em agosto deste ano, indígenas das TIs Cabeceira do Rio Acre, Katukina/Kaxinawá, Nawa e Poyanawa participaram de um treinamento em Rio Branco, Acre, no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF) da CPI-Acre, que contou com o rondoniense Oyexiener Paiter Suruí, de 28 anos, como um dos instrutores. Xiener, como é conhecido, é o filho mais velho do líder-geral de seu povo, cacique Almir Suruí, é formado em engenharia ambiental, faz parte da Kanindé e também é coordenador de projetos da Associação Metareilá, dos Paiter Suruí.
“Fui convidado pela Kanindé e pelo WWF-Brasil para ser instrutor e levei aos indígenas de diversos povos do Acre a experiência dos Paiter Suruí na proteção do território”, conta. Xiener participou de um curso de pilotagem pela primeira vez em 2021, como aluno, mas já dominava o manuseio do equipamento. Na ocasião, porém, além de aperfeiçoar os conhecimentos, ele aprendeu a fazer manutenção de drones e a utilizar ferramentas como o Smart, um software de código aberto que otimiza a coleta e o uso de dados sobre áreas protegidas, importantíssimo para a elaboração de relatórios.
“Antes da formação, eu não conhecia os aplicativos. Com o Smart, aprendi que os registros captados em campo são analisados em tempo real, em uma mesma base de dados”, diz Xiener. “E, no Acre, aproveitei para mostrar aos parentes as vantagens dessas tecnologias. Antes, as denúncias eram feitas apenas com fotos de câmeras portáteis e GPS. Era muito arriscado quando ocorria um encontro inesperado com invasores armados”.
De acordo com ele, utilizando esses recursos, os Paiter Suruí já fizeram denúncias de caça, desmatamento, garimpo ilegal, retirada de madeira e até roubo de castanha dentro do território. “Agora tudo é feito com as imagens de drone, que já vêm com as coordenadas de GPS. Fazemos relatórios utilizando o Smart e denúncias com muita precisão”, afirma.
Xiener considerou enriquecedora a experiência de conhecer a realidade e as dificuldades de parentes do Acre. “Foi emocionante ver nos olhos de outros povos a esperança de que é possível construir um desenvolvimento sustentável dentro de um território indígena. Poder contribuir e ver isso de perto é algo mágico e gratificante”, acredita. O Acre teve 33 casos de invasões a terras indígenas só em 2021, de acordo com os dados mais recentes do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil (Cimi 2022). Os relatos de indígenas sobre as invasões têm aumentado, o que demonstra a importância desse trabalho.
Retorno dos alunos
Um dos alunos de Xiener foi Andriekson Jaminawa, que vive na Terra Indígena Cabeceira do Rio Acre, na fronteira com o Peru. “Foi muito bom. Aprendemos a mexer no drone e trabalhamos com quatro aplicativos diferentes, que têm coordenadas geográficas”, diz. “O uso da tecnologia é muito importante. Nosso território ainda está preservado, mas estamos muito preocupados com os madeireiros do lado peruano, construção de estradas e as pressões sobre os indígenas isolados.” Além de Xiener, o curso coordenado por Spina, do WWF-Brasil, também teve como instrutor o sargento Márcio Brasil, do Batalhão de Policiamento Ambiental do Estado do Acre (BPA-AC), que participou de treinamentos anteriores e hoje é referência local no uso de drones.
Rodolfo Shanenawa, que também participou do treinamento, salienta que o maior problema na Terra Indígena onde ele vive, a Katukina/Kaxinawá, que fica próxima à divisa do Acre com o Amazonas, são caçadores ilegais. “Eles entram com rifles e cães pela lateral do nosso território, pelas áreas onde não há aldeias e, por isso, são pouco vigiadas”, destaca. “Achei muito importante aprendermos a manusear o drone e diversos aplicativos. Entendemos perfeitamente como vamos poder planejar o monitoramento do nosso território a partir de agora”.
De acordo com Branca Medina, coordenadora do Setor de Geoprocessamento da CPI-Acre, a parceria com o WWF-Brasil é importante porque as invasões dos territórios indígenas têm aumentado nos últimos quatro anos no Estado. “A situação ainda é melhor do que a de Rondônia, mas há um consenso de que o Acre está indo pelo mesmo caminho. Uma indicação disso é que a maior parte dos desmatadores detidos aqui é proveniente de Rondônia”, frisa.
Branca pontua que foram realizadas seis formações com monitores indígenas de diferentes povos e Terras Indígenas do Acre em 2022, no âmbito de diversos trabalhos e também dentro do “Projeto Proteção de Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil”, em parceria com o WWF-Brasil, e que estão previstos pelo menos mais outros quatro até o fim de 2023. “Nosso objetivo é que cada povo tenha pelo menos um kit de monitoramento com drone. Ainda estamos no início, mas idealizamos ter um Centro de Monitoramento tão estruturado quanto o da Kanindé, e já estamos trabalhando neste sentido”, diz.
De acordo com Raul do Valle, do WWF-Brasil, a parceria com a CPI-Acre está em uma fase mais incipiente, quando comparada ao trabalho desenvolvido com a Kanindé. Mas envolve essencialmente a mesma cadeia de atividades: geração de informações qualificadas sobre a situação de TIs acreanas, formação de agentes ambientais indígenas para o uso de tecnologias de apoio à vigilância e ao monitoramento e a constituição de uma equipe de suporte para o acompanhamento de denúncias e ações judiciais relacionadas aos ilícitos identificados.
“A ideia é fortalecer as ações de gestão territorial e ambiental a partir do uso de tecnologias de informação e comunicação para o monitoramento comunitário nas Terras Indígenas Cabeceira do Rio Acre, Katukina/Kaxinawá, Nawa, Poyanawa, Alto Rio Purus, Kaxinawá do Rio Humaitá e Mamoadate, a fim de subsidiar ações de proteção territorial. Cerca de 25 indígenas participaram do nosso treinamento em parceria com a CPI-Acre”, lembra Valle. Segundo ele, ainda não há data definida para que os demais indígenas do Acre recebam os kits de monitoramento com drone, mas todos serão contemplados.
Branca assinala que todos os equipamentos que estão sendo adquiridos pelo projeto em parceria com o WWF-Brasil vão para as TIs e que os monitores dos povos Puyanawa, Huni Kui, Shanenawa e Nawa já levaram drones, smartphones e demais assessórios para suas aldeias. “Temos uma regra básica que consiste em não entregar os equipamentos sem treinamento. É preciso que os indígenas estejam devidamente capacitados e organizados, que tenham definido uma pessoa responsável pelo drone, que precisa assumir certos compromissos, como participar do curso e valorizar o território, por exemplo”, explica ela.
Nas mãos de equipes indígenas devidamente treinadas, tecnologias avançadas como drones, aplicativos de monitoramento e geoprocessamento têm se tornado ferramentas poderosas para a proteção territorial, prevenção e combate ao fogo na Amazônia. Desde o fim de 2019, o núcleo de respostas emergenciais do WWF-Brasil conduz um projeto de expansão do uso desses recursos. O resultado é um número cada vez maior de indígenas qualificados, em diferentes Estados do país.
Desde então, o WWF-Brasil doou 45 drones para organizações locais parceiras, sendo 35 na Amazônia, 9 no Cerrado e 1 no Pantanal, de acordo com Osvaldo Barassi Gajardo, especialista em conservação do WWF-Brasil e líder do núcleo de respostas emergenciais. “Entre 2019 e 2022 foram realizados 13 treinamentos, com mais de 250 participantes, para o uso de drones e aplicativos em diversas localidades e biomas”, contabiliza. “O objetivo é que povos originários e populações tradicionais tenham cada vez mais ferramentas e autonomia para atuar na conservação dos territórios, pois eles são os maiores defensores dos nossos biomas. A manutenção do modo de vida tradicional e a vinculação com a floresta garantem a proteção dos biomas.”
Cerrado e Pantanal
Nesses dois biomas, foram realizados sete treinamentos para o uso de drones e outras tecnologias aplicadas à proteção territorial, combate às queimadas e manejo de recursos naturais.
Segundo Gajardo, no Cerrado foram realizados treinamentos para extrativistas e pequenos produtores no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em 2019, para comunidades quilombolas da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, em 2020, e, em agosto de 2022, para gestores estaduais do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins). No Cerrado de Mato Grosso foi realizado também um curso voltado aos habitantes da TI Irantxe, do povo Manoki, com participação de indígenas Miky, com foco no combate ao fogo e planejamento ao manejo integrado do fogo (MIF).
No Pantanal, um treinamento ocorreu no Parque Nacional da Serra da Bodoquena, em junho de 2022, voltado a brigadistas, gestores e guarda-parques que atuam em áreas protegidas do bioma no Brasil e no Paraguai – essa atividade envolveu tanto participantes de comunidades do Pantanal como da Mata Atlântica. Cada curso formou de 20 a 30 pessoas.
= Texto e foto: WWF Brasil –
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