Dias antes de Emmanuel Macron ser reeleito presidente da França, com 58,5% dos votos válidos, em um domingo, 24 de abril, o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Sérgio Banhos se reuniu em Paris com autoridades francesas responsáveis pelo planejamento e acompanhamento eleitoral. O objetivo era ampliar a cooperação entre os dois países e aprimorar a organização das eleições no Brasil. Magistrado de um país no qual grande parte da população ainda não tem acesso à internet e, quando tem, está exposta a notícias falsas, Banhos destacou a desinformação como um desafio para o TSE.
Outro esforço contínuo do tribunal é o de manter alto o engajamento da população na escolha de seus representantes. Ainda em setembro do ano passado, o TSE lançou uma campanha específica para os jovens que estão entrando na faixa de idade permitida ao voto. Com o slogan “Bora Votar. Eu vou porque eu posso”, a campanha incentiva o alistamento eleitoral e o “voto consciente” dos brasileiros de 16 e 17 anos. Mesmo não sendo obrigados a comparecer às urnas, esses cidadãos podem participar do processo eleitoral e escolher seus representantes nos Poderes Executivo e Legislativo.
“O objetivo da ação é estimular o interesse dessa faixa etária em participar da vida política e conscientizá-los sobre o potencial que o voto tem de mudar a realidade do país. A campanha transmite a mensagem de que o Brasil pertence a toda a população brasileira e que os jovens podem fazer a diferença por meio do voto”, diz um informe oficial da Corte a respeito da campanha
Em uma das peças veiculadas pela TV, rádio e internet, os jovens são conclamados a um exercício de alto teor cívico: “não permita que outras pessoas decidam por você. Por isso, vote porque você pode, vote porque você quer, vote porque você se importa. Não deixe de emitir sua opinião”. O vídeo da campanha foi protagonizado por atrizes e atores negros, pardos, indígenas e brancos, todos na flor da idade, em situações cotidianas. Jovens trans também figuram na campanha.
O tom dessas mensagens de exortação vincula-se organicamente ao caráter obrigatório do voto no Brasil, já que, a partir de 1988, o poder público e setores da sociedade trabalham para que dever e desejo de participação sejam partes indissociáveis da atitude e do compromisso político dos brasileiros com o voto. No caso específico do eleitorado de 16 em diante, o Portal da Justiça Eleitoral mantém uma página exclusiva, inspirada nos aplicativos de mensagem. A interface traz respostas às perguntas mais frequentes sobre a emissão do título eleitoral feitas por meio das redes sociais.
Hollywood
Apelos extraoficiais por participação política estão partindo da classe artística no Brasil e até no exterior. Anitta, Zeca Pagodinho, Whindersson Nunes e Juliette entraram na torcida organizada do voto jovem. Da Califórnia, o astro de Titanic, Leonardo DiCaprio, aderiu à hashtag #tiraotitulohoje e encorajou a juventude brasileira a pegar o documento que dará direito a sufragar candidatos em outubro e novembro. DiCaprio seguiu o exemplo de Mark Ruffalo, intéprete de Hulk, que havia feito postagem semelhante na terça-feira (26).
“O Brasil abriga a Amazônia e outros ecossistemas críticos para as mudanças climáticas. O que acontece lá é importante para todos nós e o voto dos jovens é fundamental para impulsionar a mudança para um planeta saudável. Para saber mais sobre o registro de eleitores no Brasil antes de 4 de maio, visite http://olhaobarulhinho.com #tiraotitulohoje” escreveu DiCaprio.
Corrida ao título
Seja por razões de natureza cultural ou político-ideológica, seja pelo acerto no roteiro das peças de propaganda, que contam igualmente com artistas populares, o empenho do TSE tem funcionado bem ultimamente.
De acordo com a Agência Brasil, o alistamento realizado pela Justiça Eleitoral no mês de março registrou um salto de 45,63%, quando comparado a fevereiro, entre adolescentes de 15 a 17 anos, faixa etária na qual o voto é facultativo. Para poderem exercer o direito ao voto, os jovens com 15 anos devem completar 16 até o dia do primeiro turno da eleição, que neste ano será 2 de outubro. Os números de março foram divulgados na sessão plenária do dia 5 pelo presidente do TSE, ministro Edson Fachin.
Ao todo, entre os jovens com 15 a 17 anos, o número de novos títulos passou de 199.667 em fevereiro para a marca de 290.783 em março, crescimento superior a 45%. Chama a atenção o aumento da procura pelo documento entre aqueles com apenas 15 anos: em março, foram emitidos 23.185 novos títulos para esses adolescentes, contra 12.297 documentos feitos em fevereiro, um incremento de 88,5%.
A pedido da Agência Senado, a Assessoria de Comunicação do TSE atualizou nesta sexta-feira (28) os dados do alistamento relativos ao primeiro trimestre do ano. Em meio a forte polarização política, a Justiça Eleitoral captou um aumento recorde na emissão de títulos para jovens entre 15 e 18 anos. De janeiro a março, o Brasil ganhou 1.144.481 novos eleitores na faixa etária de 15 a 18 anos contra 854.838 novos títulos em 2014 e 877.082 em 2018.
Abstenções
Ao contrário da França, cujo sistema de voto é o facultativo, no Brasil, o voto e o alistamento eleitoral são obrigatórios para todo cidadão, nato ou naturalizado, alfabetizado, com idade entre 18 e 70 anos. E são facultativos somente para analfabetos, maiores de 70 anos e para os jovens com 16 e 17 anos. Não obstante os modelos díspares, as taxas de abstenção têm crescido nas duas democracias. Em 2012, 19,6% dos eleitores franceses se abstiveram no pleito presidencial, percentual que se elevou a 25,4% em 2017 e bateu em 28,01% no segundo turno vencido por Macron. O desinteresse já usual naqueles avessos à participação ou desancantados com a política somou-se à falta de entusiasmo de parcela da esquerda com a candidatura de Macron. O presidente-eleito já foi socialista, mas migrou para o centro, terreno no qual se equilibra o Em Marcha!, partido fundado pelo próprio Macron.
No caso do Brasil, os índices de abstenção não são tão altos, mas vêm estabelecendo uma curva crescente a partir de 2010, depois de atingirem o ponto mais baixo (16,8%) da ladeira iniciada em 1994, quando saíram do patamar de 29,3%, em plena vigência do voto obrigatório. De 19,4% em 2014, passaram a 20,3% em 2018.
Sistema punitivo
A obrigatoriedade do voto no Brasil foi estabelecida em 1932, com aprovação do Código Eleitoral. A exigência foi mantida pelo artigo 14, parágrafo 1º da atual Constituição do Brasil, promulgada em 1988.
Quem deve votar obrigatoriamente e não comparece às urnas fica em débito com a Justiça Eleitoral. Deixar de votar ou justificar o voto por três eleições seguidas gera o cancelamento do título. Lembrando que, cada turno de votação é considerado uma eleição.
O prazo para a regularização do título de eleitor neste ano acaba em 4 de maio, assim como o prazo para emissão do primeiro título. Com o título cancelado, a pessoa deixa de exercer vários atos da vida civil, como participar de licitações, contratar com o poder público, renovar passaporte e inscrever-se em concurso, entre outras consequências. Por sorte, a modernização tecnológica tem facilitado a vida de quem precisa acertar o passo com a Justiça eleitoral. Serviços como emissão da primeira via do título (alistamento), mudança de município (transferência), alteração de dados pessoais, mudança do local de votação por justificada necessidade de facilitação de mobilidade e revisão para a regularização de inscrição cancelada já podem ser feitos, remotamente, por meio do sistema Título Net.
Outro alívio para os eleitores é que, por conta da pandemia de covid-19, o Tribunal Superior Eleitoral suspendeu os débitos de quem não votou nem justificou o voto nas Eleições de 2020. Portanto, mesmo o cidadão que deixou de pagar multas referentes aos dois turnos desse pleito estará apto a emitir certidões de quitação eleitoral, o que pode ser feito de forma online. Pesquisa nacional aplicada pelo Instituto DataSenado revelou que 40% dos cidadãos que deixaram de exercer o direito de voto nas eleições municipais de 2020 o fizeram por medo do novo coronavírus.
Direito ou dever?
O voto obrigatório não é consenso entre os legisladores. Ganhou força como consequência da redemocratização do país na década de 80 e, com isso, foi consolidado na Constituição. Desde então, a opinião dos eleitores tem oscilado. Em 2014, uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha revelou que 61% dos eleitores são contrários ao voto obrigatório e 34% a favor. Em dezembro de 2020, a pesquisa foi refeita e apresentou resultados que deixam uma margem de dúvida sobre para onde caminha a opinião pública: 56% dos entrevistados foram contrários à obrigação de comparecer às urnas, ante 41% que se disseram favoráveis.
No Senado, ao longo da última década quase 20 propostas de emenda à Constituição foram apresentadas para tornar o voto facultativo aos cidadãos. Duas delas, seguem em tramitação na Casa, a PEC 10/2015, proposta pelo senador Reguffe (UNIÃO-DF), e a PEC 11/2015, do senador Alvaro Dias (PODEMOS-PR).
A PEC de Reguffe prevê que o alistamento eleitoral e o voto são direitos de todo brasileiro a partir de 16 anos de idade, mas proíbe que o exercício desse direito seja exigido. A proposta aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Reguffe defende que o voto, em uma democracia, deveria ser visto como um direito e não como uma obrigação. Ele explica que apresentou a PEC no início do mandato como parte de um pacote de reforma política.
— O voto obrigatório faz com que muitas pessoas votem sem dar a devida consciência do valor desse gesto, votando, muitas vezes, em qualquer um, às vezes naquele único conhecido, às vezes naquele que gastou mais ou que o entregou alguma benesse ou alguma coisa para a pessoa. O voto facultativo vai qualificar, valoriza, o gesto de votar.
Para o senador, essa valorização do voto obrigaria também os políticos a prestarem conta de seus mandatos, rotineiramente, para convencer e conquistar os eleitores.
Também na CCJ, aguardando designação de relator, está a PEC 11/2015. Para Alvaro Dias, autor da proposta, o povo brasileiro está maduro e politizado o suficiente para que o voto não precise ser uma imposição legal. Ao justificar a medida, Alvaro Dias explica que o voto facultativo é adotado nas maiores democracias do mundo contemporâneo.
“Hoje, o voto obrigatório no Brasil estimula os altos índices de abstenção, votos brancos e nulos, bem como os votos desprovidos de convicção, em que o eleitor escolhe qualquer candidato tão somente com o objetivo de cumprir sua obrigação jurídica de votar e de escapar das sanções legais”, afirma.
Os dados do TSE confirmam essa alta abstenção do eleitorado. Em 2020, 29,5% dos eleitores habilitados a votar optaram por não comparecer às urnas. Foi o maior índice das últimas décadas, número superior aos processos eleitorais anteriores (2018, 2016 e 2014), quando o índice ficou em torno de 21%. O período de pandemia e a mudança da data nas eleições foram motivos a agravar esse não comparecimento às urnas. Na maioria dos municípios, a abstenção, somada aos votos nulos e brancos, superou a votação obtida pelo vencedor do pleito.
“A decisão sobre ir ou não às urnas deve caber ao cidadão e não ao Estado. A consequência certamente será positiva para a consolidação de nossa democracia e para o exercício consciente da cidadania”, completa Alvaro Dias.
Educação política
A maturidade do eleitor é questionada, no entanto, pela advogada especialista em direito eleitoral, Samara Ohanne. Em sua avaliação, o Brasil precisaria investir muito na educação política do eleitor para então adotar o voto facultativo.
— Ainda não estamos preparados. Enquanto isso, entendo que a imposição do voto garante maior segurança ao processo político-eleitoral e ilustra o poder-dever do cidadão — argumenta.
O consultor de processo legislativo do Senado Clay Souza e Teles acrescenta que, para os defensores do voto obrigatório, a exigência também daria maior a legitimidade das eleições, uma vez que aumenta o comparecimento eleitoral.
— Defende-se que, sendo o Brasil marcado por fortes desigualdades sociais, a obrigatoriedade do voto seria determinante para que uma verdadeira massa de excluídos participe da vida política do país. Nessa linha, argumenta-se que a obrigatoriedade do voto funciona como instrumento para engajar politicamente o cidadão, ao envolver todos no debate em torno do pleito.
Clay Souza e Teles pondera, entretanto, que em defesa do voto facultativo está o argumento de que a maioria dos votantes passaria a ser composta de cidadãos motivados e engajados politicamente, o que aprimoraria a qualidade da participação eleitora.
Relator da PEC 10/2015 na CCJ, o senador Marcos Rogério (PL-RO) rejeitou a medida, sugerindo que se faça um debate mais aprofundado sobre o tema, uma vez que o modelo é objeto de “inúmeras controvérsias entre especialistas”.
“Entendemos ser inoportuna a aprovação da matéria nos termos em que se apresenta, de modo a demandar, primeiramente, um debate mais aprofundado no seio da sociedade brasileira para,se for o caso, motivar a apresentação de nova proposição dotada de semelhante teor”, sugeriu em seu parecer.
Para Marcos Rogério, a legislação já conta com mecanismos para viabilizar a ausência do eleitor que deixar de votar por motivos de ordem pessoal ou de força maior.
O voto pelo mundo
De acordo com dados da Central de Inteligência Americana (CIA), em 205 dos 232 países do mundo, o comparecimento às urnas é facultativo, principalmente nas nações mais desenvolvidas. É o caso dos Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Japão, considerados os sete países mais ricos do mundo.
Enquanto isso, o voto é obrigatório em 24 nações, sendo que 13 são da América Latina. Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Uruguai estão entre elad. O Brasil figura em 9º lugar dentre as 15 maiores economias do mundo e é o único país ness grupo em que o voto é obrigatório.
A abstenção, além dos votos nulos, fornece a medida do interesse do eleitor no pleito ou de sua indisposição com as candidaturas. Varia bastante entre os países — até circunstancialmente, em razão de questões políticas específicas ou fatores psicossociais (ondas de descrença no sistema representativo, por exemplo). Na média, entretanto, não é muito diferente, seja o sistema facultativo ou forçado. Os dados da CIA colhidos em anos não coincidentes, mas próximos, indicam o não comparecimento de 25,8% nos países que adotam o voto facultativo e 34,3% nos países em que votar é obrigatório.
Fonte: Agência Senado