O repiquete chegou com violência durante a madrugada. Eles não perceberam. A água cercou o acampamento no barranco levando embora o barco com motor e tudo. Era um repiquete de fazer lancha e batelão ancorar no primeiro porto até a água amansar. A água cobriu tudo, até o peixe grande que tinha pegado e amarrado…entraram em desespero.
No final da década de 80 o mestre Antônio Pelado, finado Chicão, finado Dr. Santos e o Mário Mansour foram ao seringal Santa Quitéria, acima da boca do Igarapé Noaya fazer vacinação e atendimento médico. O lugar juntava muita gente carente que vinha das antigas colocações. Mulheres, crianças, homens idosos com os mais variados tipos de enfermidades, síndromes e parasitas.
Por esse tempo o Walter Pontes era vivo e morava lá. Seu Valter Pontes era uma lenda. Ele o Chico Frota no vizinho seringal Sacado. Duas lendas vivas, ricas em vivências e experiências com o rio e a floresta.
Aprendi com eles que o rio nos ensina a viver. O rio é um mestre da vida. Assim como a floresta, o mar, as montanhas e os desertos também são mestres da vida. Os que vivem na floresta adquirem uma sabedoria e um conhecimento extraordinário. Um homem que passa toda a sua vida morando com a família à margem de um rio se torna uma sábio da vida sem ter frequentado uma escola. Ele aprende com a natureza em permanente transformação. Com movimento das águas. As cheias, as estiagens, as fases da lua e a floresta. Com os peixes e os bichos do mato também.
Walter Pontes e Chico Frota conheciam a energia das águas como poucos. A água do rio Acre era o sangue que corria em suas veias. Foram feitos daquele barro, da areia das praias. Viram o auge e a decadência dos seringais. O Chico Frota partiu para a outra margem do rio da vida com quase cem anos de idade. Um verdadeiro sábio.
Fui visitá-lo na época em que recebeu o diagnóstico de um câncer. Estava na casa de sua filha caçula, a Leuda, na Vila Jorge Kalume, em Rio Branco. Quando me viu chegando, levantou-se da rede com a firmeza de um soldado pronto para a batalha. Bateu nos dois antebraços com força e me disse:
_ Companheiro Astério, um homem para morrer tem que ser macho, encarar a morte de frente, com coragem e altivez. Desabei por dentro, por muito pouco não chorei ali, na sua frente.
Anos antes, vi a mesma coragem, o mesmo brilho nos olhos de minha mãe. (Uma menina que nasceu e se criou no seringal). Certa vez ela nos disse: _ Quando eu morrer, não chorem por mim. O corpo não sou eu. Não estarei ali, enterrem no primeiro buraco que estiver aberto. Sem lamentos, desespero, gritos ou tristeza. Meu espírito estará com Deus. Não serei mais eu ali.
Coragem que minha mãe aprendeu no seringal no contato com a natureza e com Deus na sua busca. Seja na mansidão suave da brisa das estiagens, no silêncio das praias ou nas chuvas torrenciais de dezembro a meados de maio. Na fúria dos repiquetes que rasgam a terra com violência. Pessoas assim, a fé, como um dom de Deus, vem no DNA.
O homem tem que aceitar a morte com naturalidade. É a natureza nos ensinando a morrer. Morrer é apenas transformar-se como uma lagarta que sai do casulo borboleta.
Morar nas cidades apagou de nossa memória a vida livre, sábia e digna que tínhamos. O mestre dos mestres, Jesus da Galileia, amava o rio, o deserto e o mar. Depois de ressuscitar ele foi pescar. Assou peixes na brasa para os discípulos na beira do mar e falou. Falou das moradas eternas e do caminho para elas: O amor! Amor à vida, às pessoas, à natureza, à Deus…é esse o caminho.
Voltemos a nossa história…(rsrsrsr)
Pois bem, no dia da vacina o mestre Pelado e Chicão foram pescar enquanto o Mário acompanhava o Dr. Santos no atendimento médico. Pegaram um lerdo de um jundiá de uns 80 quilos. “Bicho bruto por pouco não arromba a tarrafa”, me disse o finado Chicão. Bateram tarrafa no poço do Paxiúba, lugar de barranco muito alto. Uma lindeza de Deus, cheio de pedras, esculpidas pelas chuvas e pelo rio. Fica abaixo da cachoeira do Bandeira, onde a UFAC faz pesquisas paleontológicas.
Uns trabalhando e outros pescando, assim transcorreu o dia. Às cinco da tarde acamparam em uma saliência do barranco formado pela areia, bem no poço do “Reduto”, perto do poço do Jaraquay, bem abaixo da Santa Quitéria. Duas horas de motor rio abaixo.
Antes da noite cair armaram dez linhas de espera. Amarraram o peixe que tinham pescado cedo em duas varas de Canarana com cinco braças de cordas, bem ao lado do acampamento. Tomaram todas, contaram piadas, falaram mal da vida alheia como de costume. Jantaram uma caldeirada e foram dormir. Pela manhã recolheriam as linhas, o peixe e partiriam de volta para Brasiléia tarrafeando na boca dos igarapés. Mais uma missão seria cumprida.
O repiquete…
O dia vinha partejando, o capelão roncava e as guaribas faziam coro, uma verdadeira festa no amanhecer do dia bem na mata de frente do rio, do lado da Bolívia. Se escuta de longe o ronco dos macacos até aos dias de hoje.
Um deles, acho que foi finado Chicão, acordou primeiro, desceu da rede tocando com os pés na água e não na areia. Tomou um grande susto e gritou:
_ É repiquete! É repiquete! Acordem! A água invadiu o acampamento durante a noite! Pelo amor de Deus…
Uma tromba d’água de fazer lancha e batelão encostar no primeiro porto até a água amansar. Era um repiquete dos brabos. A água invadiu a praia e o barranco cercando o acampamento deixando-os em uma ilhota. Foi uma gritaria geral. Homens da cidade, a natureza pregou uma peça.
_ Como não percebemos o rio enchendo, indagavam entre si desesperados.
Claro, dormiram encharcados de álcool e exausto do dia anterior. Mais uns minutos e o dia clareou de vez. Quem já morou na beira do rio no Alto Acre e acordou com uma enchente grande sabe do que falo. É bonito, mas assustador. A água ruge e ronca arrastando balseiro, invadindo a mata e derrubando as árvores da margem.
O volume da água e a fúria do rio impressionaram. O mais grave. O repiquete tinha levado a patinha (canoa) com o motor na popa e toda a tralha. Fogão de duas bocas, botijão, panelas, isopor, roupas…o que sobrou estava ali mesmo embaixo d’água, inclusive o peixe bruto que ficara amarrado. A água cobriu quase tudo.
Como sairiam dali? Sem barco, sem bebida, sem comida, sem nada? Uma desolação só. Cerveja, cachaça foi tudo rio abaixo. O que fazer em uma situação dessas?
O finado Chicão me contou que descia muito balseiro. Bem no meio de um balseiro um velho cumaru apontou na curva de cima do rio. Era agora ou nunca. Tinha que tomar uma atitude.
Chicão se lançou na água correndo risco de ser comido por cobra, jacaré ou mesmo de morrer afogado. Desceu a correnteza violenta agarrado no tronco de madeira no meio do rio. Baixou de bubuia atrás da patinha, a única salvação para eles. Talvez no amanhecer do dia algum morador visse a canoa arrastada pelo repiquete. Foi o que ocorreu. A sorte tinha voltado.
Me lembro que quando menino, em Brasiléia, chegava um repiquete à noite. Às cinco da manhã estava eu e outras crianças de cócoras no barranco entre a Casa Londrina e o Chico Piranambu vendo o balseiro descer. Lá pelo meio sempre ia uma canoa ou casco arrastados pelo enchente. Algum morador distraído não percebeu a enchente chegando.
Pois sim, umas três ou quatro curvas abaixo do Reduto seus olhos brilharam e o coração de encheu de alegria. Viu a canoa ancorada em um porto de uma casinha. Pessoas simples, humildes e sábias. Com grande esforço Chicão pulou do cumaru na água e nadou até lá. Conversou com os que estavam no barranco, eram conhecidos. Tinham resgatado a canoa sabendo que era do mestre Antônio. Tomado de grande alegria Chicão puxou a correia do cara branca e voltou para socorrer os amigos que ficaram ilhados. O rio tinha subido ainda mais. O perigo era iminente. Não tinham como sair dali sem um barco.
Alegres e ao mesmo tempo tristes embarcaram rumo a Brasiléia com fome já pensando nos gozadores de plantão que estariam no bar do Amadeo. O bar ficava no barranco da curva do rio, perto do velho hospital Raimundo Chaar. Seria assunto para mais de uma semana regado a cerveja, pinga e tira-gosto de salsicha. Do Amadeo se observava o movimento das águas como um farol. Era a entrada oficial na cidade de quem vinha do Alto Acre pelo rio.
Uns quatro dias depois do ocorrido o mestre Antônio Pelado me chamou na oficina de motor de popa que ele tem lá na Brasiléia. Contou detalhadamente o ocorrido e me pediu ajuda para voltar lá no acampamento. Tentar recuperar alguma coisa, as linhas, anzóis e parte da tralha.
Depois de uma semana eu, ele e o finado Chicão partimos de madrugadinha. Navegamos até às três e meia da tarde no lugar da tragédia. As marcas do repiquete estavam por todos os lados.
O filho da mãe estava vivo!
Chegamos ao lugar do acampamento. Os sinais do repiquete no barranco, na vegetação e na praia estavam por todos os lados. Muitos balseiros encalhados. A natureza é linda! Maravilhosamente e assombrosamente violenta. A terra parecia que tinha sido rasgada ao meio pela força das águas na floresta. Tocos gigantes de cumaru e outras árvores foram enterrados pelo rio, dificultando a passagem das embarcações no verão. À noite, na penumbra de uma lua minguante ou nova, olhando para o rio naquele lugar, as árvores arrastadas pelas águas enterradas no leito mais pareciam as sombras de monstros pré-históricos.
Porém, antes do anoitecer fomos tirar as linhas de espera que ficaram perdidas no repiquete. Só aproveitamos os anzóis. A força da correnteza torce a linha até o pé do toco em que está amarrada.
Quase não conversávamos. O silêncio denota o respeito pela poderosa força indomável da natureza. Mestre Pelado na proa, eu no meio e o finado Chicão na popa segurando o timão do cara branca, MG, 12,5 HP.
O sol se escondia no horizonte e a sombra da noite caiu sobre nós. Nessa hora, por alguns minutos, tudo fica em silêncio. Quando escureceu já estávamos no acampamento. Pela manhã procuraremos algumas ferramentas que o repiquete enterrou na lama. Mas, principalmente a linha em que o jundiá ficou amarrado. Jantamos e fomos dormir.
Pela manhã, antes do café, mestre Antônio começou a reconstruir o cenário antes do repiquete. A praia estava úmida e lamacenta.
_ Amarramos o barco aqui, o fogão era ali, o isopor ali”, dizia baixinho enquanto o seguíamos molhando os pés na água. _ O peixe nós amarramos em duas canaranas ali” …
Fomos na direção que ele apontava olhando atentamente para o chão. Ele identificou as duas varas, agachou-se, e com a ponta dos dedos cavou na areia encontrando a linha. _ “Chicão, a linha, a linha está aqui…”, gritou. Chicão começou a desenterrar a linha indo em direção às águas barrentas do rio.
De repente o susto! O peixe esticou a corda fazendo um grande rebojo na água.
_ O filho da mãe tá vivo! O filho da mãe tá vivo! Gritava o finado Chicão pulando na água arregalando os olhos grandes verdes, corpo magro, tostado do sol.
_ Eu sabia que te achava, vamos mostrar no bar do Amadeo para aqueles bando de cornos acreditarem, disse o mestre Pelado em tom de desabafo, rindo muito com seu dente de ouro, dando o comando:
_ Vamos levar o bicho vivo, inteiro, cobrir com galhos e folhas de urana por causa do sol.
Foi uma alegria só naquele lugar, apesar da lama e da imagem devastadora deixada pelo repiquete. Tiramos o bicho da água. Tinha quebrado mais de dez quilos depois de uma semana amarrado enquanto o repiquete passava. Desarmamos o acampamento, colocamos a tralha e o peixe na canoa e partimos de volta para Brasiléia.
Ancoramos no porto do bar do Amadeo para mostrar o peixe e pedir uma gelada que mestre Antônio Pelado degustou lentamente feliz da vida falando para os que estavam no bar e no barranco.
_ Tá aqui o peixe, não era mentira não bando de filhos da mãe. Um gaiato rebateu lá de cima ironicamente: _ E se for outro peixe que eles pegaram na viagem?
_ Só se for um que o teu pai pegou…
Uma história de pescador verdadeira. Foi uma aventura e tanto. Um milagre! Todos vivos, inclusive o peixe. Nunca subestime um repiquete.
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