Era uma fera afamada que vivia em uma loca no pé do salão, uns quatro metros ou mais de profundidade. Nenhum dos pescadores conseguiu pegar. Brabo que só! Um jundiá preto, jaú, um caparari grande, filhote ou um piraíba velha comedora de gente…ninguém sabia quem era o morador da loca das águas escuras do poço do Fausto. Rasgava redes de arrasto, arrombava tarrafas e malhadeiras…botava quem ia lá para correr.
Pois moço, aconteceu no mês de julho do verão de 1986 quando o rio Acre clareava a água. Ficava esverdeado e preguiçoso formando suavemente canais entre as praias e os salões de pedra e tabatinga por onde as canoas passavam. Nos dias em que as embaúbas viravam as folhas com a friagem. Era comum, os bichos nas margens do rio, saciar a sede protegidos pela escuridão da noite antes que a lua cheia despontasse no céu clareando toda a mata.
Eu, mestre Antônio (Pai do vice-prefeito Carlinhos do Pelado) e o finado Chicão partimos de Brasiléia no raiar do dia. Uma névoa branca pairava sobre as águas mornas como sempre acontece durante o verão. O nosso destino era o poço do Fausto, localizado depois da Praia dos Paus. Entre o antigo Seringal São Vicente, do Alexandre Farah, e o Sacado, do velho João Thomaz.
Navegamos por mais de dez horas rio acima numa patinha de cedro, vermelha, de 10,5 metros de comprimento, um metro de boca, motor 12,5hp, Montgomery, de rabeta, conhecido como “cara branca”, devido a cor da sua lataria. Concorria com o Brígido, 16hp, apelidado de “burro preto”. Eram os motores que dominavam a navegação das canoas e pequenos batelões no rio Acre naquela década.
Chegamos ao poço do Fausto por volta das cinco horas da tarde. Era um lugar muito esquisito. Sombrio, escuro, mata fechada de um lado e do outro do rio. Sem uma casa por perto. Dava um certo medo. Uma sensação de solidão, abandono, distanciamento da civilização. Bateu uma melancolia no entardecer. Faz-se um silêncio na mata. Os bichos vão se aquietando. Em meados de setembro ouvíamos a moagem das onças no cio. Assustador. Grilos, ratos, corós, macacos da noite, arapongas e outros animais de estranhos lamentos. Ouvíamos o som das águas do rio nos paus e nas pedras formando pequenas corredeiras.
Armamos acampamento no barranco acima da praia, que ficava do lado do Brasil. A outra margem é a Bolívia, onde a água corre pelo salão profundo formado de pedras e uma argila dura e escorregadia. O sol declinou por trás da mata, a sombra da noite chegou como um manto negro pontilhado de luzes azuis; as estrelas no infinito. A Via Láctea está lá, em todo seu esplendor, em toda a sua glória. A nossa casa.
Rio, mata e céu estrelado, mas tínhamos ido ali por outro motivo. Pegar um bicho desconhecido que vivia por ali. Mestre Antônio Pelado escolheu uma linha grossa de oito braças de comprimento. Na ponta, o maior anzol que até então eu tinha visto na vida. A isca era um curimatã de mais de três quilos, viva, preparada especialmente para ocasião, foi iscada pelo rabo; na pequena boca um anzulim, que servia de cabresto para que a isca pudesse se movimentar de um lado para o outro debaixo d’água. Um jeito de enganar a fera que queríamos pegar.
_ Na última viagem eu mergulhei nesse lugar e achei a boca da loca, tem mais de um metro e meio de diâmetro. Tive medo, sei que a fera está aí dentro. Pode ser uma sucuri ou, quem sabe, um peixe velho, cabeludo. Um peixão velhaco mesmo.
Foi exatamente assim o que o finado Chicão me falou. Ele tinha o corpo esquelético, olhos esverdeados, ombros bem largos por causa dos ossos proeminentes, pele morena tostada de sol, olhar esbugalhado e vermelho por causa da cachaça. Finado Chicão, companheiro de lida, de luta deixou saudade. Um homem que vivia em permanente confronto com a natureza desafiando seu poder.
Com a lanterna mestre Antônio Pelado fazia os últimos preparativos para soltar a linha n’água. Amarrou a ponta de cima na sacupemba de um velho cumaru ferro encalhado no barranco, trazido pela última enchente do rio. Reclamou porque queria amarrar em uma urana, que é flexível para cansar o danado. Mas não existem uranas em pé de salão.
Tudo pronto! Mestre Antônio começou a soltar a linha, com duas pedras servindo de chumbada, para que o anzol com a isca de curimatã ficasse assentado na boca da loca. O Chicão escorou a canoa com o varejão bico de ferro, que ele tinha tanto orgulho, a linha desceu. Agora, tudo era uma questão de tempo, de espera para ver o estrago.
O ANZOL…
Me disse o mestre Antônio que foi comprado na Rêmolo Jarude, em Rio Branco, especialmente para pegar aquele bicho. Foram uns dois anos de preparação porque os moradores da região contavam desse peixe que ninguém nunca tinha visto. Arrombava tarrafas, redes de arrasto, malhadeiras, quebrava linhas e roncava no buraco como uma onça raivosa na toca. Era preciso coragem para ir à noite ali. O anzol era de aço, grosso, com mais de um palmo e meio de cumprimento.
O RIO…
O rio é sempre um mistério. Tem um quê de encanto, de beleza, de enigmas. O rio guarda segredos sob suas águas. O rio é como um velho sábio. Testemunha e conhecedor da vida e da história. Dos dramas dos homens. Quantos amores e famílias nasceram e morreram às margens do velho rio Acre? Homens, mulheres e crianças nasceram, se criaram, viveram e morreram às margens do rio. Desde o Moa ao igarapé do Patos nas cabeceiras do Acre…crianças, mulheres, homens cada um ao seu tempo e ao seu modo para cumprir a sina, o destino.
Hoje só lembranças de um tempo vivido em que o rio era o centro da alegria, da felicidade, do comércio, dos sonhos de riqueza, fortuna, esperanças e vida. Vidas que o rio do tempo arrastou num repiquete para sempre com a chegada do progresso, do novo.
A HORA DO BICHO TINHA CHEGADO…
Depois de assentar a linha no fundo do rio, na frente da loca, mestre Antônio lavou as mãos na água, fez o sinal da cruz e disse:
_ Dentro de uns trinta minutos a lua cheia vai sair. Vamos para o acampamento preparar um tracajá para comer. Também vou tomar uns tragos porque não sou de ferro.
Da popa do barco o finado Chicão varejava atravessando o rio em direção ao acampamento. Da proa, mestre Antônio focava com a lanterna comprada na Bolívia, tentando achar a entrada do acampamento no barranco que ficava entre as embaúbas. Era um velho acampamento dos que pousavam ali, inclusive os índios. Havia silêncio, só o barulho do varejão e o barco deslizando na água.
Quando a canoa já estava a poucos metros da praia, nos assustamos com o estrondo do outro lado do rio. As águas se moveram ruidosamente. O barulho me pareceu como de um grande pedaço de terra, ou uma pedra bem grande se deslocando e caindo do alto do barranco dentro d’água.
_ O bicho tá na linha Chicão, volta, volta rápido, gritou o mestre Antônio focando com a lanterna no rumo de lá. Meu coração disparou. Mestre Antônio procurava pela raiz do cumaru ferro onde a linha foi amarrada. Me agarrei às bordas da canoa com força me preparando para correr (não sei pra onde; pensei cá comigo: O que é que eu vim fazer aqui?). Podia ser um jacaré, uma velha sucuri, sei lá…atravessamos o rio de volta, continuamos procurando pela linha, não conseguimos vê-la. Era de seda branca, grossa.
Quando um peixe grande é fisgado a linha fica tensionada para o meio do rio ou para cima. Ele está tentando escapar da morte certa. Nada da nossa linha. O foco da lanterna correu o cumaru da copa ao tronco, foi quando o Chicão falou pasmado:
_ Tá ali…a linha, no seco, no barranco, fora d’água!
Outro susto! Como poderia a linha de oito braças, com pedras, um anzol grande estar fora do rio como se mãos humanas tivessem retirado d’água? Quem poderia ter feito um negócio desses em menos de três minutos? Da proa mesmo mestre Antônio foi colhendo até chegar no anzol. Ele estava lá, sem a isca, todo aberto, espichado, como se alguém tivesse feito isso em um torno mecânico numa oficina. Que bicho estranho. O anzol não quebrou, abriu.
Voltamos frustrados em silêncio para o acampamento. Quem iria acreditar nessa história? Reverenciamos a coragem e a luta do sei lá o quê para escapar. Falamos um monte de impropérios com ele, mas com respeito pela fuga, coragem, força e ousadia. Já em nossas redes, no acampamento, a lua cheia no céu, vieram as divagações:
TEORIA I
De acordo com mestre Antônio, que mora em Brasiléia e já beira os 90 anos e, que, desde menino conhece o rio como ninguém, foi um peixe mesmo. Talvez uma piraíba velha comedora de gente que fez morada no poço do Fausto. Quando saiu da loca para jantar, antes da lua nascer, deu de cara com a isca suculenta. Mordeu, sentiu o anzol prender na parte de cima da boca, subiu com força para fora d’água, deu um salto se contorcendo no ar, tensionando o cabo, abrindo o anzol e jogando a linha no barranco entre as pedras do salão.
TEORIA II
Segundo o finado Chicão, a explicação poderia ser outra, sobrenatural. Ele ouviu contar entre os índios que quando ficam velhos viram bichos. Uma sucuri, um peixe, onça, queixada. O morador da loca poderia ser um deles. Um velho índio.
Chicão disse que o poço do Fausto pegou fama. Até os dias de hoje se comenta que um dia os índios Jaminawas acamparam por lá. Tiraram uma sucuri de uma velha tronqueira que havia na boca da loca. Comeram ela sapecada na coivara. Talvez eles tenham jantado um parente que virou uma cobra velha em dias passados.
Deitado em minha rede, olhando o céu estrelado, a lua por cima da mata, ouvi tudo em silêncio. Os mistérios dessa vida são muitos. Ficamos por lá ainda uns dois dias. Pegamos alguns peixes e voltamos com uma certeza: Na cidade ninguém iria acreditar em nossa história. Só ficou mesmo o anzol espichado de prova. Ainda tá por lá, na oficina do mestre Antônio.
Gabriel Garcia Marquez, autor de “Cem Anos de Solidão”, disse: “A vida não é o que a gente viveu, mas o que a gente recorda e como recorda para contar”.
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