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Reportagem do site Yahoo Notícias, publicada em 21/07/2021

A crise socioeconômica acentuada pela pandemia de Covid-19 no Brasil vem alterando substancialmente, de maneira negativa, a alimentação de setores mais pobres de nossa população. Não faltam relatos de pessoas em situação de necessidade extrema, recorrendo a sobras de comida, alimentos de menor qualidade ou até optando por cozinhar a lenha pelo aumento do preço do gás de cozinha.

Dentro desse contexto de precariedade, cresce espaço para um dos maiores ‘vilões’ da alimentação: o ultraprocessado. De acordo com Ana Paula Bortoletto Martins , líder do Programa de Alimentação Saudável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), a previsão é de que o consumo desse tipo de item aumente.

“À longo prazo, esse aumento [do consumo de ultraprocessados] pode trazer um maior nível de adoecimento, incluindo doenças do coração, obesidade, diabetes, entre outras enfermidades que estão se mostrando relacionadas aos ultraprocessados que não são tão óbvias como, por exemplo, asma em crianças, problemas renais e até casos de depressão”, afirma a nutricionista.

Segundo ela, estudos apontam uma ligação direta desse tipo de alimento com o aumento da mortalidade. “O cenário é esse: se o crescimento acontecer de forma desenfreada, o risco é termos uma população que estará numa situação de saúde muito pior do que está hoje”, atesta Ana Paula.

Afinal, o que são os ultraprocessados?

Além do seu aspecto ‘artificial’, elaborado para ser mais atrativo, esse tipo de alimento possui, segundo a nutricionista, todo um contexto preestabelecido para ser consumido em maiores quantidades.

“Esses produtos são pensados com propósito de que a pessoa coma sem perceber. Então, por exemplo, fazendo outra atividade, na frente da televisão, sem prestar atenção no momento da alimentação e no sabor do alimento. Além disso, no caso de bebidas açucaradas, nós já temos a comprovação de que quando consumimos calorias em formas líquidas, o corpo humano demora mais para reconhecer a sensação de saciedade. A consequência disso é que a pessoa consome mais do que ela deveria sem perceber”, explica.

Os ‘exemplos clássicos’ de ultraprocessados, de acordo com a especialista, são:

  • salgadinhos
  • refrigerantes
  • comida pronta congelada
  • bolachas
  • macarrão instantâneo
  • bebidas açucaradas

“Sempre haverá uma situação que vai modificar o aroma, a cor, a textura, tornando, digamos assim, mais atrativos para o consumo”, alerta Ana Paula.

Outra ‘armadilha’ dos ultraprocessados é o que se chama de hiper palatabilidade. “É a combinação de sabores, gordura, açúcar, a crocância. Tudo feito para tornar o sabor desses produtos muito atrativo para os seres humanos, de uma forma que a gente não encontra na natureza. Assim, nosso organismo não está acostumado a ser estimulado dessa forma, o que pode acabar em consumo excessivo”.

O lobby das grandes empresas pelos ultraprocessados

De acordo com a nutricionista, que acompanha a pauta de alimentação saudável na sua atuação pelo Idec, há um forte movimento de setores da industria para garantir que esse tipo de alimento seja mais acessível ao bolso dos brasileiros e, assim, chegue mais facilmente às suas mesas.

“Um exemplo muito claro que temos hoje no Brasil é o subsídio para a produção de refrigerantes. Existe um mecanismo fiscal para beneficiar a produção do produtor na zona franca de Manaus. A própria Receita Federal tem questionado e já tentou modificar esse modelo. Mas o grande lobby das indústrias de refrigerantes faz com que isso seja mantido”, exemplifica Ana Paula.

Para a especialista, um dos caminhos para ‘frear’ a influência dessas grandes empresas seria aumentar os mecanismos de transparência e participação da sociedade nas políticas públicas.

“Hoje, no Congresso Nacional, grande parte dos políticos acabam representando interesses comerciais e não há uma medida mais proativa de ouvir os interesses, por exemplo, da saúde pública e dos pesquisadores que trabalham com alimentação saudável”. Segundo ela, as estruturas que haviam para garantir os interesses da população foram desmontadas.

“No Brasil, tivemos por muitos anos a experiência do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], que atuou de forma intersetorial para avançar com as políticas de combate à fome. Ele foi totalmente destituído sem haver um mecanismo de escuta ativa que o substituísse. Por exemplo, como povos indígenas e populações tradicionais vão conseguir bater na porta dos políticos sem ter um apoio devido para isso?”, questiona a nutricionista.

Outra medida que ajudaria a frear o aumento do consumo de ultraprocessados no país, explica Ana Paula, seria a revisão das normas de rotulagem de alimentos [alertando para alto teor de açúcar, sódio e gordura saturadas]. A Anvisa aprovou novas regras referentes à questão, porém, segundo a nutricionista, de forma insuficiente mesmo depois de uma longa discussão que durou cerca de sete anos.

” Houve vários momentos de pressão das indústrias para travar o processo, trazendo argumentos econômicos falsos, com dados absurdos, usando pesquisas sem validade científica. Foram várias tentativas de retrasar o processo, no intento de que a versão final tivesse uma efetividade menor do que o desejado. Isso, de fato, acabou acontecendo, já que a proposta aprovada teve critérios muito altos, deixando muitos produtos que deveriam ter alertas em seus rótulos de fora”, lamenta.

Alimentação saudável é mais cara?

Um dos principais argumentos levantados quando o tema é a implantação de uma dieta mais diversa e nutritiva é a questão econômica. Segundo Ana Paula, os números existentes ainda provam que comer de maneira saudável é mais acessível, mas isso pode ser modificado em breve.

“Os dados que temos no Brasil ainda mostram que ter um padrão alimentar baseado em produtos frescos, in natura, ainda é mais barato do que consumir apenas ultraprocessados. Essa tendência está mudando rapidamente, talvez com a pandemia ainda mais. Mesmo assim, uma alimentação saudável ainda seria mais barato considerando que você terá uma combinação de cereais, grãos, verduras, frutas, leite e carnes em pequenas quantidades”, explica.

Outra barreira a ser derrubada quando a questão é um prato mais nutritivo e diverso é a questão da falta de praticidade, algo que a nutricionista admite ser um desafio, principalmente quando se leva em conta o cotidiano corrido das grandes metrópoles do país.

“As pessoas têm pouco tempo para se dedicar às refeições, portanto, precisaríamos ter uma maior oferta de refeições saudáveis em restaurantes e menos redes de fast food e comida ultraprocessada. Isso é algo a ser trabalhado. É preciso conseguir compatibilizar a alimentação saudável dentro da rotina e da dinâmica do trabalho. São desafios. Não é fácil, mas existem caminhos”, argumenta.

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