Em meio à Guerra do Paraguai (1864-1870), o Senado estudou a criação de uma comissão nos moldes das atuais comissões parlamentares de inquérito (CPIs) para investigar supostas falhas do governo brasileiro no conflito militar com o país vizinho.
O pedido foi apresentado em 1867, quando a guerra completava dois anos e meio, pelo senador Silveira da Mota (GO). Para ele, o Senado precisava apurar por que o combate consumia tanto dinheiro dos cofres públicos e a paz não chegava nunca.
Após acirrados debates no Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado imperial, no Rio de Janeiro, os senadores decidiram enterrar a proposta. Se a tivessem aprovado, essa teria sido a primeira comissão de inquérito da história do Senado.
Em papéis amarelados pelo tempo, o Arquivo do Senado, em Brasília, hoje guarda toda a discussão que os senadores travaram em torno da pretendida CPI da Guerra do Paraguai.
Logo no dia em que apresentou a proposta, de acordo com os documentos históricos, Silveira da Mota discursou:
— Por mais que os poderes públicos procurem dissimular a gravidade das circunstâncias atuais e atravessar este doloroso período fazendo-o passar por período normal, todo mundo descobre que é da guerra que derivam todas as consequências desastrosas que o país está sentindo. Eu não posso olhar para a guerra sem estremecer, sem dar de face com as consequências não só presentes, mas ainda as consequências futuras, as dificuldades que vai acarretar para os dias de nossos filhos.
Essa foi a maior guerra da qual o Brasil já participou, tanto em duração (cinco anos e dois meses) quanto em número de combatentes mortos (estimados 50 mil).
De um lado do front, estavam o Brasil, a Argentina e o Uruguai, associados na chamada Tríplice Aliança. Do outro lado, isolado, estava o Paraguai.
O combate teve início depois que soldados do ditador paraguaio, Francisco Solano López, invadiram a província de Mato Grosso, em reação a uma intervençã
— Além do tributo de sangue, veio o tributo da fortuna pública, veio o tributo dos impostos, veio uma despesa excessiva, vieram os deficits, veio a necessidade dos empréstimos — continuou Silveira da Mota. — Em suma, veio todo este cortejo hediondo de males que hoje mete medo ao povo brasileiro: sangue em abundância derramado nas campinas do Paraguai, as nossas finanças arruinadas, os nossos cofres exauridos.
Segundo o pedido de CPI, a Câmara seria avisada da abertura do inquérito. Caso os deputados aceitassem também participar, a comissão seria transformada em CPI mista. A ideia era que os parlamentares não só interrogassem autoridades, funcionários públicos e empresários no Rio de Janeiro, mas também viajassem à região do Rio da Prata para, nos próprios campos de batalha, melhor investigar os supostos problemas.
O senador Barão de São Lourenço (BA) apoiou a criação da CPI:
— Logo no princípio, disse um dos nossos homens políticos práticos daqueles lugares [a região do Rio da Prata] que a guerra deveria durar mais de dois anos. Os nossos estadistas riram-se. As profecias estão se cumprindo, mas eles, que todos os dias supunham a guerra acabada, continuam nos seus erros, na seguridade de únicos sabedores de nossas coisas.
Quando o pedido de CPI foi feito, a Guerra do Paraguai ainda estava no meio. Seriam necessários outros dois anos e meio até que enfim se chegasse ao cessar-fogo.
Ao cabo dos cinco anos, o combate consumiu 614 mil contos de réis dos cofres imperiais, de acordo com o historiador Francisco Doratioto, professor da Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro Maldita Guerra — Nova História da Guerra do Paraguai (Editora Companhia das Letras). A cifra equivale à soma dos orçamentos públicos dos 11 anos anteriores à guerra e explica por que as contas do governo sempre fechariam no vermelho pelas duas décadas seguintes.
O ministro da Guerra era o senador Marquês de Paranaguá (PI). No Império, ao contrário de hoje, os parlamentares podiam ocupar cargos no governo sem se licenciarem do Poder Legislativo. Ele aproveitou o livre acesso à tribuna do Senado para defender o governo e rechaçar a abertura da CPI.
— Não posso aceitar a moção e espero que o Senado não votará a favor dela, por ser altamente inconveniente — discursou o senador e ministro. — O nobre senador [Silveira da Mota] avalia perfeitamente as circunstâncias duríssimas em que se acha o país. Seguramente não quererá agravá-las. Em circunstâncias tão melindrosas e difíceis, sua palavra autorizada pode criar tropeços à marcha da administração [pública]. Um inquérito sobre os negócios da guerra tende a quebrantar a força moral de que tanto carece o governo.
Segundo o ministro da Guerra, o governo não tinha culpa pela demora do conflito. Ele explicou que o Brasil fora pego desprevenido pela declaração de guerra. Ninguém podia imaginar que Solano López invadiria Mato Grosso e desafiaria D. Pedro II. O Marquês de Paranaguá afirmou:
— Esta guerra era meditada e preparada havia longos anos pelo nosso gratuito inimigo, que tinha reconcentrado o seu ódio contra o Império, espreitando ocasião favorável para tirar uma vindita [vingança] ou satisfazer os seus planos de ambição. Foi preciso aceitarmos a guerra, embora não estivéssemos para ela preparados.
O calcanhar de Aquiles do Brasil era não possuir um Exército digno desse nome. Eram relativamente poucos os soldados. Nas guerras e revoltas que surgiram logo após a Independência, por exemplo, D. Pedro I precisou contratar soldados mercenários estrangeiros para lutar em nome do Império. No período da Regência, os governantes optaram por não organizar um Exército forte, temerosos de que, tal como ocorrera em certas partes da América espanhola, os militares se rebelassem e tomassem o poder.
— Não tínhamos um Exército como convinha, atenta [considerada] a posição que ocupamos na América do Sul — continuou o ministro da Guerra. — Foi preciso formá-lo, prepará-lo e empreender longas marchas, vencendo mil contrariedades. Quando a guerra no Uruguai acabou, o Brasil contava com 10.857 homens, fora a força naval. Foi com esse número que nos surpreendeu a Guerra do Paraguai. Fez-se um apelo ao país e vieram então essas legiões de voluntários que o estremecido amor da pátria fez marchar de todos os ângulos do Império.
No Senado, a estratégia do Marquês de Paranaguá foi garantir aos parlamentares que ele próprio estaria constantemente à disposição para prestar todos os esclarecimentos que pedissem, o que tornaria desnecessária a CPI.
O autor do pedido logo percebeu o artifício e tratou de provocar e desestabilizar o ministro. Ambos chegaram a travar um diálogo tenso no Plenário.
— Então começamos a campanha com 10 mil e tantos homens? Vossa Excelência tome sentido nisto — questionou Silveira da Mota, interrompendo o orador.
— É o que presumo — devolveu o Marquês de Paranaguá.
— Não, Vossa Excelência não pode presumir. É ministro, há de saber.
— Pois bem, respondo com os mapas e os documentos oficiais que tenho. Eu não venho ante o Senado fazer um romance.
— É verdade, mas não pode fazer presunções.
— Acredito que posso contar com a benevolência do nobre senador.
— Sem dúvida.
— Não peço a sua complacência. Quero mesmo ser julgado com severidade, esperando justiça, o que não exclui certa benevolência.
— E toda a consideração que o nobre ministro merece. Estou apenas retificando fatos. Vossa Excelência não se incomode com isto.
Outro entusiasta da criação da CPI da Guerra do Paraguai foi o senador Barão de Cotegipe (BA). Reforçando o requerimento de Silveira da Mota, ele desfiou um rosário de críticas ao governo em questões financeiras, administrativas e até militares.
Na avaliação do Barão de Cotegipe, os únicos que verdadeiramente estavam ganhando com a Guerra do Paraguai eram os empresários:
— A guerra é em benefício dos fornecedores. O negócio de fornecimentos é objeto de favores: seja o senhor F incumbido de tal fornecimento, seja o senhor S incumbido de tal outro.
Ele acusou o governo de contratar navios privados para levar munição, comida e remédio para os soldados, enquanto navios militares zarpavam com os porões vazios do Rio de Janeiro para a zona de guerra.
Relatou que alguns batalhões recebiam uma quantidade tão exagerada de carne que parte dela acabava indo para o lixo e, ao mesmo tempo, outros batalhões “eram obrigados a ir à margem do rio molhar a carne dura e talvez podre que se lhes distribuía”.
Na província argentina de Corrientes, segundo o Barão de Cotegipe, os soldados brasileiros haviam recebido munição “que pode chegar para uma guerra de seis anos” e outros objetos essenciais “que não chegam nem para quatro meses”.
— O Senado não percebe a razão de semelhantes fatos? — questionou ele. — Se não houver muita rigidez na economia dos dinheiros públicos, a guerra não se acaba. São tais os interesses enraizados que, enquanto o Brasil puder despender um vintém, ela não tem fim — discursou o senador.
O Barão de Cotegipe também denunciou irregularidades na nova política imperial de pagar pela alforria de escravizados pertencentes a particulares e enviar os novos soldados negros para a guerra:
— O que nos diz Vossa Excelência dos abusos que tem havido na concessão de prêmios aos [senhores] que apresentam libertos? — perguntou ele ao ministro da Guerra. — Quem tem o seu escravo vicioso, incorrigível, doente etc. manda oferecê-lo para defensor da pátria e é considerado ótimo! Muitos são apresentados bons, mas daí a alguns dias são julgados inaptos e regressam para os lugares de onde vieram. E quem os deu fica com as comendas e os títulos. É um estelionato!
Para reforçar o argumento, ele narrou um episódio ocorrido na Bahia, sua província:
— Veio a exame um aleijado, apresentado por uma influência eleitoral. O médico, que era interessado, disse: ‘Não é nada, dou-lhe um talho na mão e fica bom’. Deu o talho e parece que o homem mais aleijado ficou. Entretanto, a nação comprou-o e é um dos que já hão de ter voltado. Até já usam pintar os cabelos dos negros velhos e se lhe põem dentaduras novas.
— Eu digo que têm sido rejeitados — reagiu o ministro da Guerra. — Pode ser que alguns tenham sido aceitos nas províncias, mas aqui [no Rio de Janeiro] tem-se verificado isso com muito escrúpulo.
— Têm passado muitos pela malha — insistiu o Barão de Cotegipe.
— Têm passado peixões — apoiou Silveira da Mota.
Historiadores, contudo, afirmam que não existem evidências de que fraudes assim tenham sido recorrentes. O mais provável, dizem, é que tal narrativa tenha sido inventada por grandes senhores, que não desejavam abrir mão de seus escravizados, nem mesmo mediante indenização, e faziam de tudo para sabotar as políticas abolicionistas do Império — inclusive a libertação de escravos para que lutassem na Guerra do Paraguai. Na visão dos escravocratas, o poder público não tinha o direito de intervir na propriedade privada dos cidadãos.
O Barão de Cotegipe estava no grupo dos escravocratas. Em 1888, por exemplo, ele seria um dos poucos senadores a votar contra a aprovação da Lei Áurea.
Na defesa do governo, o senador Marquês de Jequitinhonha (BA) discursou:
— Hei de me opor a esta indicação [de CPI], hei de votar contra, se Deus quiser, porque a julgo inoportuna. Todo esse inquérito deve ser feito depois que as nossas circunstâncias melhorarem. Não é agora que havemos de tomar conhecimento de um negócio dessa ordem.
Poucos dias depois de ser apresentado, o pedido de CPI foi rejeitado pelo Senado. Dos cerca de 50 senadores, apenas 11 votaram a favor da investigação. Silveira da Mota se indignou e acusou o Parlamento de ser submisso ao governo:
— Não compreendo, senhores, que em um governo constitucional se possa preterir o direito que tem o corpo legislativo de desdobrar todas as pregas desse grande acontecimento e exercer a grande fiscalização a respeito do dispêndio do sangue e dos dinheiro públicos. Até agora, doloroso é dizê-lo, o corpo legislativo tem se contentado com as informações oficiosas que o governo lhe tem prestado em seus relatórios e documentos, mas tais informações não indicam senão os pontos favoráveis à administração e encobrem todos os seus fracos. O Parlamento deve levantar a sua voz e restabelecer as suas prerrogativas absorvidas pelo Poder Executivo.
Ele não desistiu da ideia. Logo em seguida, voltou a propor a criação da CPI, mas dessa vez por meio de projeto de lei, e não por requerimento. A nova proposta, porém, jamais chegou a ser levada a voto.
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a abertura da CPI da Guerra do Paraguai não seria uma forma de atacar o imperador D. Pedro II. Tratava-se, na realidade, de uma briga entre partidos políticos.
O Brasil era parlamentarista. O governo era encabeçado pelo primeiro-ministro, que escolhia todos os ministros de seu gabinete. Em 1867, quem detinha o poder eram os progressistas-liberais. Os conservadores estavam na oposição. Como integrante da bancada conservadora, Silveira Mota pediu a criação da CPI com o intuito de desestabilizar os adversários, para que seu próprio grupo político subisse ao poder.
O historiador Vitor Izecksohn, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Duas Guerras nas Américas (Alameda Editorial), explica:
— Os conservadores eram críticos da Guerra do Paraguai não porque fossem pacifistas. O que eles queriam era derrubar os progressistas-liberais. Tratava-se de um processo de fritura e desgaste do gabinete ministerial, do jogo natural da política. Em 1868, os progressistas-liberais caíram e os conservadores assumiram o gabinete. Nesse momento, quem era adversário da guerra se transformou em apoiador e vice-versa. Os progressistas-liberais, uma vez na oposição, inclusive quiseram investigar a atuação do senador conservador Duque de Caxias como comandante das forças aliadas na Guerra do Paraguai.
Izecksohn lembra que os políticos e diplomatas do Império não imaginavam que o Paraguai, um dos menores países da América do Sul, resistiria tanto antes de ser derrotado. O país, de tão obstinado, nunca chegou a se render. Isso contribuiu com o prolongamento da guerra.
O historiador Ricardo Henrique Salles, que dá aula na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e escreveu o Guerra do Paraguai — Escravidão e Cidadania na Formação do Exército (Editora Paz e Terra), diz que os gabinetes ministeriais e os partidos políticos não podem ser culpados pela demora da conflito.
No início, segundo ele, a guerra se estendeu porque, de fato, o Brasil não estava preparado, seja pelas deficiências do Exército, seja pelo desconhecimento dos militares em relação ao território paraguaio, o que contribuiu para a lentidão no avanço das tropas.
— Depois, a guerra se estendeu por causa de D. Pedro II — continua Salles. — Quando as forças aliadas finalmente tomaram Assunção, na virada de 1868 para 1869, Caxias aconselhou o imperador a dar a guerra por encerrada, mas ele não aceitou. D. Pedro II insistiu que a ação militar acabaria apenas quando se prendesse Solano López, que havia fugido. Ele temia que o ditador voltasse ao poder. Por causa disso, a guerra ainda se arrastaria por mais de um ano. Solano López só seria localizado e morto em 1870.
D. Pedro II, contudo, jamais poderia tornar-se alvo da CPI e ser responsabilizado pela demora da Guerra do Paraguai. Pela Constituição de 1824, a figura do imperador era inviolável e sagrada.
Ainda de acordo com Salles, apesar das acusações, nunca se comprovou nenhum caso vultoso de corrupção ou desperdício de dinheiro público nos negócios da Guerra do Paraguai.
No Império, as CPIs não eram exatamente como as atuais. A Constituição não concedia poderes investigativos ao Senado e à Câmara. No entanto, os senadores e deputados brasileiros costumavam seguir o modelo da Inglaterra, onde o Parlamento tinha uma tradição de longa data de, por meio de inquéritos, minuciosamente fiscalizar o governo.
Embora não falasse em “comissões parlamentares de inquérito”, o regimento do Senado do Império permitia a criação de “comissões especiais”, para que parte dos senadores se dedicasse por alguns meses à discussão de determinado problema nacional. O que Silveira da Mota propôs em 1867 foi uma “comissão especial de inquérito”.
As CPIs só seriam oficialmente instituídas pela Constituição de 1934, a segunda da República. Contudo, apenas a Câmara poderia criá-las. No ano seguinte, os deputados federais instalaram uma CPI sobre as condições de vida dos trabalhadores urbanos e agrícolas.
Foi a Constituição de 1946 que deu ao Senado o poder de também criar CPIs. Os senadores exerceram pela primeira vez o poder de fiscalização em 1952, com uma CPI que se debruçou sobre a indústria e o comércio do cimento. Na época, o setor da construção enfrentava uma crise em razão da falta generalizada do produto no mercado.
O Senado e a Câmara puderam instalar CPIs mistas, somando forças na investigação, a partir da Constituição de 1967. A primeira CPI mista, de 1976, esquadrinhou “a posição de inferioridade atribuída à mulher brasileira em todos os setores”, incluindo a política e o mercado de trabalho.
As comissões de inquérito se tornaram mais efetivas a partir da Constituição de 1988, que lhes deu o formato atual. As CPIs ganharam poderes de investigação de autoridades judiciais, como a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico. As conclusões dos inquéritos passaram a ser enviadas ao Ministério Público, para que os infratores pudessem ser processados civil e criminalmente.
Desde 1952, os senadores criaram 117 CPIs — a mais recente delas é a CPI da Pandemia (também chamada de CPI da Covid), iniciada em abril. Desde 1976, os senadores e deputados instalaram 70 CPIs mistas.
Entre os temas mais recorrentes dos inquéritos parlamentares, estão a corrupção no governo, o desvio de dinheiro de empresas estatais, problemas em privatizações, irregularidades envolvendo bancos, a crise da Previdência Social, os conflitos agrários, o massacre de indígenas e a destruição da Amazônia.
Fonte: Agência Senado
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